terça-feira, 28 de julho de 2009

RIO CONGELADO


Uma mulher sentada na frente de um trailer, olhar perdido no cinzento do horizonte, fumando, enquanto lágrimas escorrem em seu rosto. Ao entrar em casa, o ambiente interior é varrido por uma câmera que mostra dois meninos - um adolescente e outro, ainda criança. A expressão dela é marcada pelas rugas, o ritus facial de quem tem sofrido na pele as dificuldades de sobreviver em condições precárias, os dedos encardidos pela nicotina ligam-se ao dialogo entre os três personagens que teimam em resistir a uma situação inesperada: o abandono/fuga do marido e pai destruindo a convivência e alguns sonhos que pareciam próximos da realidade.
Essa é a seqüência introdutória dos 97 minutos de “Rio Congelado” (Frozen River, EUA,2008), de Courtney Hunt, incluindo-se sub-textos como elementos que serão evidentes na narrativa, mas não analisados porque desviariam o roteiro do sentido dado ao drama vivido por duas mulheres de etnias distintas, que se fortalecem na conjugação de suas necessidades.
Ray Eddy (Melissa Leo) morando em Nova York, próximo à fronteira com a cidade de Quebec (Canadá) vê suas economias e seu marido desaparecerem às vésperas do Natal. Um emprego no supermercado e os dois filhos para criar entabulam suas responsabilidades de continuar a rotina, sendo ainda pressionada pelos credores que a cada dia intentam retirar seus pertences por falta de pagamento. E está preste a perder o contrato da casa que iria comprar. Em busca do marido por conta da pressão do filho adolescente que a culpa por não dar a devida atenção ao pai, daí o abandono familiar, descobre o carro abandonado do marido na Reserva Mohawk tendo na direção uma nativa, Lila (Misty Uphan). Energicamente retira a jovem do carro. Mas descobre que esta vive de transportar imigrantes ilegais do Canadá para os EUA através do congelado rio St. Lawrence, precisando para isso, da mala de bagagem de um carro onde possa colocar o “produto”. As necessidades dessa personagem afinam com as de Ray, que vê no transporte ilegal um modo de ganhar dinheiro para ir se mantendo e, quem sabe, reaver o contrato da casa de seus sonhos.
A história de Lila também é dramática. Seu filho recém-nascido lhe foi arrancado pela sogra por não ter condições de criá-lo. Nas horas vagas ela sobe em uma árvore para ver a criança de longe. As duas mulheres unem-se no esforço comum de minorar seus sofrimentos e continuam mantendo a ilegalidade do comércio cada qual pensando em sair da miséria a que se reduziu a vida delas.
A época do drama ganha maior dimensão, visto que não há a imagem natalina comum aos filmes que se passam nesse período. O pai ausente, a mãe na cadeia por traficar estrangeiros pelo “rio congelado”, o filho adolescente investindo em arranjar recursos ilícitos para presentear o irmão menor, uma arvore de natal engendrada, tudo isso é mostrado de forma a retirar qualquer ranço melodramático. O que emerge é a solidariedade das duas mulheres entre si e, possivelmente, um recomeço mais feliz. A metáfora é dada: um carrossel improvisado pelo adolescente gira em frente ao trailer, levando nas cadeiras o filhinho de Lila e o filho menor de Ray, numa nova oportunidade para viverem a vida.
O tipo feminino demonstrado em “Rio Congelado” não fantasia o que o imaginário social conseguiu imprimir secularmente como o “sexo frágil” e que o cinema tem dado mostras de abranger com tipos de heroínas ou então de vitimas. Os dois extremos se chocam nas representações e nem sempre traduzem a condição inerente de uma realidade que se sobrepõe ao mito do “ser mulher”.
Tenho usado muito os recursos da representação feminina para avaliar como o cinema tem configurado este gênero e tenho me surpreendido, pois, ao recortar as épocas, a tradução intersemiótica proporciona elementos interessantes para a discussão sobre esse gênero através dessa arte. A exemplo, lembro, “O Sorriso de Monalisa”, de Mike Newell, com Julia Roberts, ambientado nos anos 1950, onde a maioria dos tipos femininos jovens tendo como aspiração máxima o casamento, manteve em cena os quesitos sobre a “estabilidade” matrimonial e o potencial de sucesso profissional aspirado por algumas delas, um dos valores sociais daquela época.
Em “Rio Congelado” as personagens femininas revelam tipos que transitam ao nosso lado todo dia, talentosas e estratégicas na condução de suas próprias vidas. Ray sabe que não pode mais contar com o marido, mas é acusada pelo filho de ter sido a causa do abandono. Não se deixa abater nem quando vê os filhos passando fome, nem aceita que o mais velho abandone a escola para trabalhar. Lila não tem outra forma de garantir recursos para reaver o filhinho das mãos alheias senão o trabalho marginal de transportar estrangeiros para outros países subsumidos pelo débito com os patrões. A parceria entre as duas, primeiro é impositiva, depois, necessária. Culpas pela prática da ilegalidade elas sabem que têm, mas se não ousarem não conseguem o que lhes falta. A convivência e o conhecimento de suas fragilidades transformam as diferenças entre elas, tornando-as fortes. A solidariedade, o ato final da parceria (seqüência da fuga e, depois, retorno e entrega de Ray ao policial) é o sentido moral que as vincula às responsabilidades que têm que dar conta.
O filme é a estréia de uma diretora também roteirista que não se perde nas entrelinhas (questão étnica, questão do tráfico de imigrantes). Foi candidato aos Oscar de atriz e roteiro. Merecidamente. Perdeu nesta competição, mas ganhou em muitas outras. Uma pequena obra-prima dos produtores independentes.
Não percam.
Cotação: Excelente (*****)

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