A primeira imagem de “Aquele Querido Mês de Agosto” (Portugal, 2008)
é de um terreiro doméstico onde galinhas ciscam enquanto uma raposa as observa tentando apanhá-las. Uma espécie de “cartão postal” da zona rural onde será focalizada a ação do filme. Subsequente, as tomadas circulam em ritmo mais ou menos curtos, captando grupos musicais típicos da região. Esses números são entrecortados por seqüências rápidas de conversas entre pessoas comuns, ora brincando, ora contando fatos passados, ora comentando o presente. A câmera passeia também pela oficina de um jornal local e comentários sobre a criação dele no inicio do século passado, de um projeto familiar e atualmente dedicado aos conterrâneos. É um modo exemplar de registrar os fatos da cidade, com o noticiário tradicional desde o registro dos que morreram, casaram, nasceram, ou seja, tudo o que acontece na “terrinha”. E antes que mais apêndices apareçam há lugar para o diálogo entre o diretor Miguel Ramos e seu roteirista discutindo a produção do filme. Essa discussão do embrião da filmagem é uma espécie de cordão umbilical entre o documentário e o drama a ser focalizado.
Sempre fazendo metacinema, mesmo quando se distancia no documento, o filme captura imagens que registram casos marcantes da região. Como a narração de um rapaz que em todos os carnavais se atira do alto de uma ponte. Nesse enfoque ele está sem um dente incisivo e problema numa das pernas. Sofreu quando não mediu o nível da água na última queda. Ele conta a sua odisséia para a câmera e, muito mais adiante, quando se vê num grande plano um desfile carnavalesco passando pela ponte, já não se vê mais o “saltador”. Isso é mostrado de forma muito sutil como, aliás, tudo no trabalho de Ramos.
Na filmagem dramática vê-se a busca de atores. As pessoas chegam com as suas identidades ou já estão selecionadas e vêem o movimento dos técnicos. Sem pontuação, adentra-se no enredo proposto e segue-se a cantora de uma banda que se apaixona pelo primo, também músico. O óbice ao romance é o pai dela, extremamente possessivo. Diz que a mãe sumiu “porque foi levada por extraterrestres”. Mas o pessoal da aldeia conta que ela fugiu com outro homem. Este pai não quer o casamento da filha que diz ser a imagem da mulher que perdeu. Mesmo assim, a jovem entrega-se ao primo numa noite de festa. O bastante para que o moço afirme que não quer seguir com a família para a França como estava programado. Mas ninguém lhe dá ouvidos nem a sua amada. Há um close dela rindo nervosamente e chorando ao mesmo tempo mesclando perfeitamente o documento e a ficção posto que nessa hora não se está filmando o drama dos novos Romeu e Julieta. É um momento brilhante interpretado pela cantora Sônia Bandeira. E um dos melhores do filme.
Há muito que ver nas duas horas e meia de projeção. Detalhes como o dos motoqueiros passando por dois momentos chaves do romance entre os jovens músicos, da popular “festa dos colhões”, tradição machista que se adapta aos tempos modernos abrindo espaço para as mulheres, do programa feminino de uma rádio local, de uma declaração hilária de um marido bêbado ao lado da esposa, de uma canção sobre o vinho considerando “a garrafa uma vela e o tonel o caixão”. E mostrando a sintonia com os brasileiros, ouve-se numa sessão de karaokê, a canção “Nossa Senhora”, de Roberto Carlos.
A religiosidade do povo português é enfocada de várias maneiras, mas a síntese é de uma procissão em louvor a Nossa Senhora da Conceição recortada pelo depoimento em off de um homem que descreve a sua crença ao ser curado de uma hérnia de disco, com dores atrozes na coluna. Ele afirma ter ido carregar o andor da santa e ter ficado curado (“não foi fé coisa nenhuma...fui e deixei de sentir dores sem pensar em nada”).
A cultura lusa está no filme com muita imaginação. O processo de metacinema chega ao auge no encerramento quando todos os técnicos discutem sua forma de criar imagens, som, montagem etc.
Um filme diferente. As regras dos gêneros que aborda (documentário e drama) são jogadas para longe. Surge uma espécie de “espelho” entrecortado de flashes do cotidiano servindo para um projeto de cinema sem métrica do cânone, mas extremamente forte na estética aberta sobre o que é cinema.
Uma pequena obra prima que merecia melhor público.
Sempre fazendo metacinema, mesmo quando se distancia no documento, o filme captura imagens que registram casos marcantes da região. Como a narração de um rapaz que em todos os carnavais se atira do alto de uma ponte. Nesse enfoque ele está sem um dente incisivo e problema numa das pernas. Sofreu quando não mediu o nível da água na última queda. Ele conta a sua odisséia para a câmera e, muito mais adiante, quando se vê num grande plano um desfile carnavalesco passando pela ponte, já não se vê mais o “saltador”. Isso é mostrado de forma muito sutil como, aliás, tudo no trabalho de Ramos.
Na filmagem dramática vê-se a busca de atores. As pessoas chegam com as suas identidades ou já estão selecionadas e vêem o movimento dos técnicos. Sem pontuação, adentra-se no enredo proposto e segue-se a cantora de uma banda que se apaixona pelo primo, também músico. O óbice ao romance é o pai dela, extremamente possessivo. Diz que a mãe sumiu “porque foi levada por extraterrestres”. Mas o pessoal da aldeia conta que ela fugiu com outro homem. Este pai não quer o casamento da filha que diz ser a imagem da mulher que perdeu. Mesmo assim, a jovem entrega-se ao primo numa noite de festa. O bastante para que o moço afirme que não quer seguir com a família para a França como estava programado. Mas ninguém lhe dá ouvidos nem a sua amada. Há um close dela rindo nervosamente e chorando ao mesmo tempo mesclando perfeitamente o documento e a ficção posto que nessa hora não se está filmando o drama dos novos Romeu e Julieta. É um momento brilhante interpretado pela cantora Sônia Bandeira. E um dos melhores do filme.
Há muito que ver nas duas horas e meia de projeção. Detalhes como o dos motoqueiros passando por dois momentos chaves do romance entre os jovens músicos, da popular “festa dos colhões”, tradição machista que se adapta aos tempos modernos abrindo espaço para as mulheres, do programa feminino de uma rádio local, de uma declaração hilária de um marido bêbado ao lado da esposa, de uma canção sobre o vinho considerando “a garrafa uma vela e o tonel o caixão”. E mostrando a sintonia com os brasileiros, ouve-se numa sessão de karaokê, a canção “Nossa Senhora”, de Roberto Carlos.
A religiosidade do povo português é enfocada de várias maneiras, mas a síntese é de uma procissão em louvor a Nossa Senhora da Conceição recortada pelo depoimento em off de um homem que descreve a sua crença ao ser curado de uma hérnia de disco, com dores atrozes na coluna. Ele afirma ter ido carregar o andor da santa e ter ficado curado (“não foi fé coisa nenhuma...fui e deixei de sentir dores sem pensar em nada”).
A cultura lusa está no filme com muita imaginação. O processo de metacinema chega ao auge no encerramento quando todos os técnicos discutem sua forma de criar imagens, som, montagem etc.
Um filme diferente. As regras dos gêneros que aborda (documentário e drama) são jogadas para longe. Surge uma espécie de “espelho” entrecortado de flashes do cotidiano servindo para um projeto de cinema sem métrica do cânone, mas extremamente forte na estética aberta sobre o que é cinema.
Uma pequena obra prima que merecia melhor público.
Luzia,
ResponderExcluirÉ raro nos dias de hoje sermos arrebatados com obras com o poder que "Aquele querido mês de agosto" carrega. Infelizmente a obra entrou no Cine Líbero num momento de retomada - o problema do equipamento-(espero que tenha sido por esse motivo que o público tenha sumido). Uma pena mesmo.Que Deus abençoe as mãos do sensível e soberbo Miguel Gomes.
Abraços.
Aerton Martins (aka Mark).
Luzia, magnifica descrição e comentário de "Meu querido mes de Agosto". Vi e amei o filme!
ResponderExcluirQueria te parabenizar tambem pelo brilhante artigo "Politica e Poder", hoje em O LIBERAL!
Parabens amiga voce consegue cada dia ser melhor!
bjs
Luzia
ResponderExcluirDesde há muitos anos sou seu seguidor...e continuarei sendo. Admiro sus inteligência e seu indestrutivel entusiasmo por tudo que faz...e sempre faz bem feito.
Abs
Cory Miranda