O novo filme de Pedro Almodóvar
traz a suposta “marca do autor” na demonstração de cenas de sexo, e, também, na
predileção por temas e tipos bizarros, a lembrar de perto o enfermeiro que
responde pelo estupro e consequente gravidez de uma mulher em estado de coma
(Fale com Ela, 2002). Se se atenta para a aparência do filme em termos de
gênero, pode ser novidade o ingresso em um polêmico (pode gerar obra-prima como
mero produto industrial na linha de Hollywood) suspense. “A Pele que eu
Habito”(La Piel qua habito/Espanha, 2011) tem roteiro de seu irmão Augustin, e
baseia-se no romance “Tarantula” do francês Tierry Jonquet. Trata de um médico
especializado em cirurugia de pele que depois de ver a sua mulher gravemente
queimada em conseqüência de um desastre de carro dedica-se intensamente à
pesquisa de enxertos, consegue sobrevivê-la, mas antes de transplantar tecido
vê sua amada se suicidar quando esta se olha num espelho e avalia sua desfiguração.
Na pesquisa, Richard Ledgard, o médico (Antonio Banderas), acaba
numa área experimental que lhe dá chance a uma missão de vingança, visto que o
episódio dramático do suicidio da esposa causa um fato mais cruciante para ele
marcando a vida de sua filha Norma que assistira ao episódio fatal da mãe.
O cineasta divide a sua narrativa em um longo
flash-back sem a métrica de “fade-outs”(cortinas escuras). Simplesmente coloca
legendas (“6 anos antes”, ou “De volta ao presente”). Almodovar foi criticado
pelos que presumiram “por cima” que ele estivesse se submetendo a um gênero, o suspense,
com a linguagem linear. Mas não é isso o que ele quer. Pode-se pensar,
inicialmente, sobre a figura de um moderno Frankenstein que adentra pelo
terreno do erotismo. A criação da “criatura” e o ato de rebelar-se de acordo
com a “matriz” de Mary Shelley escapam de uma simples critica ao “homem que
imita Deus” (como foi visto o livro de Shelley na sua época). A potencialização
de formas de poder para “modelar” pessoas, revelada no filme, entra nas
discussões atuais que aderem à perspectiva dos estudos de gênero apontando
para, inicialmente, as definições culturais do “ser homem” e do “ser mulher” a
partir da socialização do ser humano pelo único entendimento que teria a
ciência e a cultura – a biologia - e trata das discussões sobre o corpo sexuado, da diferença entre os sexos,
mostrando que o homem e a mulher mantêm relações culturalmente construídas.
Almodòvar de forma fria e sob a tensão de um processo
cruel de transformação, faz o protagonista escalar esses dois horizontes,
embalando a sua criatura numa grande figura a qual ele quer reproduzir para
efeito de vingança: uma mulher que ele domine. Agora não está mais em jogo sua
adoração pela amada, mas uma transposição do sentimento de ódio transformado
aos poucos pelo fenômeno que está a sua frente, a sua criatura, a quem
supostamente domina e o ama como novo tipo produzido. Na “pele”, se habita o
corpo criado por outrem, no interior deste corpo há outra “anima”, e se o
componente feminino (a vagina criada) foi pensado para explorar a vingança em
seguidos estupros, há uma personalidade que reflui e se mantém submissa até a
antevisão de uma nova odisséia. A travessia é de caráter espiritual e de
afetividade da personagem Vera (Elena Anaya) por toda a sua história passada. A edição (montagem) que privilegia cortes bruscos, que usa muitos closes e enquadramentos objetivos não deixa que o ritmo se esvaia na opção por idas e vindas no tempo. E estas idas e vindas não são tocadas de forma horizontal como em muitos filmes modernos: há um delineamento do espaço-tempo que diz bem do propósito do autor: um drama que se encaminha entre a cultura, o psicológico e a ficção-cientifica.
Antonio Banderas não filmava com seu conterrâneo desde “Ata-me”(1990). O desentendimento entre os dois foi superado e o ator, hoje famoso, está bem à vontade no papel. E não se pode dizer que o resto do elenco apresente distorções. Todos cumprem suas partes.
Filme rigoroso de um diretor que
explora a pesquisa estética. Para ver sem falta. É possivel estar entre os
melhores do ano.
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