Idrissa (Blodim Miguel) em "O Porto"
Um enredo tão candente na expressão maior de uma
linguagem tão simples reflete o que de melhor o cinema pode expressar como
arte. Embora alguns cineastas se esmerem para conseguir uma proposta diferente
de criação, o finlandês Aki Kaurismäki não precisou de malabarismos de câmeras
nem de grandes astros para dizer em pouco mais de 100 minutos como a vida das
pessoas está enredada na de outras e como é possível esse processo garantir a diferença
na dimensão coletiva se o interesse passa a ser de todos.
O filme “O Porto”(Le Havre/França, Finlandia, 2011)
acompanha um engraxate (André Wilms) de meia idade em seus dias de trabalho em
alguns pontos da cidade, algumas vezes sendo escorraçado dos espaços da elite.
Em uma de suas peregrinações pelo porto de Havre percebe um garoto africano que
havia viajado de seu país com destino à Inglaterra dentro de um contêiner. Os
companheiros de viagem desse menino são presos pela policia local com vistas à
deportação. O garoto consegue fugir. Recebe dele alimentos e permenece escondido sob uma
ponte. Apiedando-se, o engraxate leva-o para morar em sua casa, agora vazia
haja vista que sua esposa se encontra hospitalizada. Entre o reconhecimento do
“ter que fazer” alguma coisa para salvar o garoto e o formato desse “que
fazer”, o engraxate inicia uma campanha entre os vizinhos para encaminhar o fugitivo
ao seu destino, a Inglaterra, onde sua mãe o espera.
O roteiro de “O Porto” é de autoria do próprio diretor,
com 31 títulos no currículo, além outros tantos como produtor e roteirista. Foi
o vencedor do Premio Ecumênico do Festival de Cannes 2011 e ainda detentor de
outros prêmios e candidaturas.
O filme é muito simples como linguagem e tema.
Prega a solidariedade e não se envergonha de mostrar que essa atitude pode
gerar grandes benefícios. Isso no cinema materialista e muitas vezes derrotista
de hoje, especialmente do que se vê como“filme de festival”, é raro.
Marcel Marx (André Wilms), o engraxate, é uma
espécie de Jean Valjean moderno (a lembrar do herói de “Os Miseráveis” de
Victor Hugo). Ele não rouba, mas acalenta um fugitivo da justiça e por isso é
perseguido por um inspetor de policia que na postura obsessiva parece com
Javert, o vilão do romance citado (e lembrado agora no musical extraído dessa
fonte). O inspetor Monet (Jean-Pierre Darrousin), persegue Marcel sem se
apiedar do fato de que Arletty, a esposa doente, está hospitalizada com um
prognostico sombrio rondando os seus exames. Há uma mudança de atitude no
final, indicando que no caso de “O Porto” os miseráveis podem ganhar amparo de
seus algozes. Por isso, certamente, o filme sensibilizou o júri ecumênico de
Cannes.
É interessante observar que Kaurismäki é um
cineasta que aposta na vida de seus personagens. De sua obra conhecida como
“Trilogia da Finlândia” por aqui só se conhece “O Homem sem Passado”, de 2002,
onde o personagem sofre de amnésia e luta para recuperar seu espaço na
sociedade. No caso de “Porto”, o autor vai além dos limites de sua terra,
ampliando a sua visão de otimismo no campo de imigrantes, no caso de um alvo de
preconceito e perseguições que acaba seguindo o seu destino objetivado por
auxilio de estranhos e de outras terras. São muito sugestivos os planos do
garoto no tombadilho do navio que o leva para Londres tentando conter as
lágrimas ao ver que está conseguindo realizar o sonho de seguir seu destino.
Isso não é colocado como elemento de melodrama. O jovem Idrissa (Blodim Miguel)
é contido, não “derrama lagrima” nem exorbita os agradecimentos ao amigo e à
ajuda gratuita que encontra na Finlândia.
“O Porto”ganhou 15 prêmios internacionais. Não há
destaque maior para a narrativa que se limita a contar a história proposta. Nem
mesmo se esmiuça a questão imigratória, ou o que levava os negros africanos a
saírem de suas terras arriscando-se em viagens potencialmente suicidas. Creio
que houve uma resposta emotiva ao trabalho de Aki Kaurismäki. Sinal de que
cinema é sensibilidade compartilhada com a técnica. Imperdível.
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