terça-feira, 5 de março de 2013

UM “SOM” DAS CIDADES?


Importante e simbólica esta imagem de "O Som ao Redor". 


Na primeira sequência de “O Som ao Redor” (Brasil, 2012, 131 min.) a câmera de Pedro Sotero e Fabricio Tadeu sob a direção de Kleber Mendonça Filho circula pelas imagens desbotadas de um tempo e espaço –  as velhas fazendas dos senhores de engenho do passado– e de pessoas supostamente moradoras daquele lugar, os trabalhadores e suas famílias. O interessante dessa tomada é que o registro se mostra em preto e branco, demonstra o tempo passado construido pelas próprias indumentárias, e o face desse povo que aparece posando nessa captura, estático, só a câmera em movimento cria a dinâmica. O corte se desloca para o momento atual, onde moradores de um bairro de Recife(PE), articulam-se num cotidiano naturalmente urbano, marcado por pessoas de classe média. A vida de cada familia é exposta em suas peculiaridades e oferece a trama que vai expor descentradamente uma visão de como é possivel sobreviver entre o trabalho, a organização do lar, a insegurança, o amor, a secura afetiva, os laços familiares, as obrigações, os vícios e as virtudes, o voyeurismo, o mundo infantil no espaço público e no privado, as agitações da rua deslocadas para dentro da casa, as pessoas “de bem” e as submissas e/ ou as de “pouco valor”. Enfim, há imagens reveladoras que seguem um corifeu, o jovem corretor de imóveis João (Gustavo Jahn), um dos netos de Francisco (W.J.Solha) homem de posses, dono dos edificios onde tem seu mando, vive recluso e sem ostentação, mas na soberbia de quem já foi mais poderoso.
Na exposição fragmentada desses quadros, o desenrolar da trama desconhece uma linearidade, mas alguns fatos que se instalam nesse contexto evoluem para linkar o ontem com o hoje numa vertente de contrariedade (no sentido conceitual de oposição ou resistência a algo) – se a quietude do povo das fazendas é mostrada numa primeira sequência, o abandono daquele ambiente – capturado durante a visita de João e da nova namorada ao avô Francisco nesse mesmo espaço, hoje com as máquinas paradas e tomado pelo mato – é de supor que tenha delimitado o poder de mando do velho senhor de engenho. Mas isso não ocorre sendo evidenciado no tratamento que este dá aos guardas de vigilância que se propõem ao preço de vinte reais/proprietário, a “por ordem na rua”, dar segurança contra os ladrões, situação expressa nas portas gradeadas e herméticas que mesmo assim ainda facilitam os roubos pelos visitantes noturnos. A atitude agressiva e debochada de Francisco aos “vendedores de segurança” é demonstrativa de que ele ainda se considera com muita autoridade.
O tratamento narrativo do filme na sua aparência descentrado rende aspectos colados ao que o diretor está interessado em mostrar como a idéia de irracionalidade de algumas personagens, como a atitude da dona de casa (Maeve Jinkings, fenomenal) com múltiplas carências (afeto, desânimo da vida que leva e no tratamento aos filhos) aplicando estratégias para manter o status quo – tem insônia supondo ser pelos latidos do cão na rua e tenta calá-lo de qualquer forma, e o uso do aspirador de pó para sugar a fumaça do cigarro (que não é qualquer um, mas aquele que adquire do entregador de água cujo maço ela esmaga sob a máquina de lavar roupa). A filha a repreende, mas ela fuma escondido.
Incômodos reflexos das fronteiras entre a realidade e a necessidade de viver na cidade constrõem um microcosmos com evidências da atmosfera que urge programar para fugir dos perigos. O sensor do alarme que ilumina as casas simboliza o estado emergencial em que vive o cidadão urbano.
Enquanto a exposição desse painel vai formando a tensão daquele mundo de hábitos no cotidiano da cidade, outras intercorrências favorecem uma nova vertente linkando o ontem ao hoje. Na  soberbia dos senhores de engenho que tudo podiam, o apelo a um guarda-costas é o principal eixo de expectativas para essa nova versão da prepotência urbana desse senhor. O eterno “você sabe com quem está falando” ainda repercute no acinte do ladrão aos “vigilantes da paz”.
A última sequência formada de dois momentos paralelos reencontra o velho desenho de mandos e lucros. Mas estes só num ajuste final.
Kleber de Mendonça Filho mostra aos brasileiros a sua criatividade para realizar um cinema de excelencia. 
Um último ponto, agora em relação ao diretor: numa das primeiras mostras de curta metragem promovidas por Márcia Macedo, "Vinil Verde" (2004), escrito e dirigido por Kleber,  ganhou o prêmio de melhor curta metragem, e eu estava no juri. Esse prêmio não consta entre os demais laureis do filme. Como sempre, o Pará é esquecido mesmo dando sua contribuição em prol da arte. 

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