Anita Bkörk é "Senhorita Júlia", de Alf Sjöberg.
Quando August Strindberg escreveu “Senhorita Julia”, em
1888, a sociedade ocidental obedecia a postulados datados de dois séculos
anteriores onde/quando as mulheres seriam escravas de um comportamento que
minimizava seus instintos. E esses instintos, antes de Freud, seguiam o que no
século anterior à edição da obra de Strindberg seriam modulados por uma
sociedade francamente machista. George Rousseau (históriador da cultura
americana), por exemplo, propôs o que chamou de “retórica dos nervos”,
alertando sobre estereótipos dos gêneros acolhidos em uma literatura que se
tornou admirada especialmente pela classe social mais abastada e que via nos
atores uma sujeição da mulher a caprichos que no fundo inviabilizavam a sua
autonomia e davam destaque à representação masculina.
O filme homônimo de Alf Sjöberg (1903-1980) que hoje será
revisto em Belém (no Cine Olympia, às 18h30) baseia-se na obra de Strindberg,
especialmente na versão para o teatro, mas tem o cuidado de aplicar-se à
narrativa cinematográfica. Esse cuidado leva a certo desprezo para com uma
interpretação psicossocial do tema. A hístoria da jovem de classe abastada que
no baile da noite do solstício, se entrega ao empregado do pai sem medo de que
esse relacionamento afete sua vida social (ou mesmo de forma particular, em
família) é vista em uma linguagem especialmente cinematográfica, com
enquadramentos que evidenciam expressões e uma edição que dinamiza a narrativa
como se o filme fosse primeiramente uma parte da dança.
Sjöberg era, em 1951, quando o filme foi realizado, um ícone
do cinema de sua terra (a Suécia). O espectador de hoje deve lembrar-se dele
como o personagem do velho médico de “Morangos Silvestres”(1957, de Ingmar
Bergman), que no caminho da universidade onde receberá um troféu evoca a
memória de quadros de sua vida quando jovem e chega a se defrontar com a morte
(a instigante sequência em que se vê num funeral ou quando examina um corpo que
diz estar morto e isso é contestado por um examinador). Na qualidade de
diretor, quando se decidiu a filmar “Senhorita Julia” sabia da capa
preconceituosa que envolvia o original literário e procurou dar ao tipo
interpretado por Anita Bkörk (já falecida), uma feição, sobretudo, de jovem
alegre, expandindo a euforia de viver, mas sofrida quando se deixa enredar por
uma relação com outra classe. E desse processo se vê envolvida pelo desdém do
próprio namorado e pela família.
O filme começa com um plano de uma gaiola com um passarinho
de estimação de Julie. Depois, o rosto dela aparece no canto do quadro, próximo
de uma janela. A sequência posterior de Jean, o criado, comandando a carruagem
atravessa estatuas de deuses gregos. Quando chega a Julie surgem estatuas de
mulheres, mas sempre em segundo plano e sem a evidência das esculturas vistas
anteriormente. Nada na construção das imagens é aleatório. Poucos filmes se dão
a trabalho de precisar os elementos de linguagem cinematográfica. Por exemplo:
quando há uma pergunta seguida de uma resposta o interesse repassa no
campo-e-contra-campo ao jogo de closes. E há delírios cênicos como a cena do
incêndio na casa do conde seu pai ou de um vendaval visto de uma sala.
O filme é exemplo de cinema muito bem construído. Na ânsia
de fugir do teatro Sjöberg usou de todos os recursos para mostrar que também
poderia ser cinema. E acabou realizando um dos mais representativos exemplos
dessa arte. Tanto que algum exemplo de criatividade, com a inclusão de cenas de
um tempo em outro é aquilo que se vê em “Morangos...” quando o velho médico,
deitado na relva, vê-se no passado quando jovem. Sem corte. E em "Senhorita Julia" as imagens do passado sendo
parte da narrativa da jovem circulam num segundo plano marcando os tempos da
vivência da personagem. Ftografia magistral. Filme imperdível.
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