sexta-feira, 9 de outubro de 2015

CARNAVAL DEVOTO


Imagem do filme "Carnaval Devoto", de Regina Queiroz

Hoje é dia de lembrar o cinema no Círio. Costumo dividir o assunto em exibição e produção. No primeiro caso, lembro os programas especiais que as casas exibidoras trabalhavam na época dessa festa, seja com retrospectiva de grandes sucessos de bilheteria seja novidades e, em um certo ano, a realização de um festival do cinema brasileiro (1974). No âmbito da produção, muito se fez em curta metragem especificamente sobre o Círio. Nos longas só recordo a inserção de cenas da procissão, primeiramente, no filme inglês “O Fim do Rio” (The end of the River, 1947) de Derek Twist (com produção do famoso Michael Powell), em seguida, no primeiro trabalho de Jorge Bodanzky, com produção financiada pela TV alemã, “Iracema” (depois, com o adendo de “Uma Transa Amazônica”) e o que realizou o cineasta Libero Luxardo, especialmente em “Um Dia Qualquer” (1962) e “Brutos Inocentes”(1973). Hoje circula um documentário média metragem (55 minutos) e depois de lançado e exibido durante 3 dias no cinema Olympia deve ganhar mais tempo num cinema alternativo, possivelmente o Libero Luxardo, do Centur.
“Carnaval Devoto” (Brasil, 2015) dirigido por Regiana Queiroz foi realizado em locações na cidade de Vigia e Belém durante a festa do Círio de Nazaré, em outubro de 2012. A estrutura capta a obra de Dante Aliguieri, “A Divina Comédia”, mostrando o caminho percorrido passando pelo inferno, pela agonia do purgatório até o processo de redenção e alcance do céu, em uma analogia que remete às manifestações profanas, festivas, alimentares, culturais, religiosas que marcam essa festa paraense, registrada como o maior evento de devoção católica do mundo e patrimônio Imaterial da Humanidade.
A ideia foi relacionar a manifestação popular de gancho religioso com trechos de Dante, relatando a viagem do poeta pelos reinos do inferno, purgatório e finalmente o Paraiso. Com esse módulo se vê não só a exibição religiosa, mas as manifestações em paralelo, começando com a famosa “Festa da Chiquita” que é realizada a partir do Bar do Parque na Praça da Republica, no sábado em que se faz a trasladação da imagem da Virgem do Colégio Gentil Bittencourt à Catedral de Belém (conhecida como a Sé). Passa pelo carnaval, afiançando o titulo extraído de um texto do paraense Delcidio Jurandir, usado por Isidoro Alves em seu trabalho de mestrado para o Museu Nacional (RJ) e ainda por manifestações afro-brasileiras que foram vetadas pela igreja católica em certo tempo.
O filme cria o diálogo entre as imagens sempre tomadas com câmera na mão, a intertítulos em italiano com a tradução em rodapé de trechos da Divina Comédia. Com isso se realiza numa linguagem barroca o momento de uma manifestação de cunho religioso que se amplia no cenário de uma jornada em caminho de um céu onde Dante acha a sua Beatriz e ajudado por São Bernardo, intercede junto à Virgem Maria como um símbolo da fé.
A autora viu a procissão paraense como uma jornada a se comparar com o que o poeta italiano escreveu. E procede a forma de narrativa na evocação medieval do clássico literário. No filme está o Círio numa dimensão inédita em cinema, sem ser apenas um retrato de uma manifestação religiosa, mas um acontecimento amplo, abraçando um prisma cultural que os entrevistados focalizam com muita propriedade. Há, inclusive, a contrariedade de discursos onde se pronuncia uma evangélica sobre o culto á imagem.
No recorte entre o religioso e o profano, desmonta-se essa dicotomia hierárquica justamente pelo projeto da autora em dimensionar o que leva os participantes do Círio de Nazaré à convivência entre a fé que os emociona como pagadores de promessas e aquele que também é o que pode estar na “festa da Chiquita” ou no bar, no CAN, ou na convivência em múltiplos lugares. Encontrar o Círio é encontrar-se, também com todas as ambiguidades de uma vida humana. Achei fantástica essa forma de tratar o evento enquanto fato social que tem uma história, tem versões antropológicas, mas evidencia a prática popular que enfrenta as normas e segue em frente.
Creio que “Carnaval Devoto” está entre os mais felizes exemplos cinematográficos em torno do Círio de Nazaré. Cabe muito bem estar em cartaz hoje quando só mesmo as salas culturais exibem um tipo de cinema dedicado ao evento.


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