Imagem do filme "Carnaval Devoto", de Regina Queiroz
Hoje é dia de lembrar o cinema no
Círio. Costumo dividir o assunto em exibição e produção. No primeiro caso,
lembro os programas especiais que as casas exibidoras trabalhavam na época
dessa festa, seja com retrospectiva de grandes sucessos de bilheteria seja
novidades e, em um certo ano, a realização de um festival do cinema brasileiro (1974).
No âmbito da produção, muito se fez em curta metragem especificamente sobre o
Círio. Nos longas só recordo a inserção de cenas da procissão, primeiramente,
no filme inglês “O Fim do Rio” (The end of the River, 1947) de Derek Twist (com
produção do famoso Michael Powell), em seguida, no primeiro trabalho de Jorge Bodanzky,
com produção financiada pela TV alemã, “Iracema” (depois, com o adendo de “Uma
Transa Amazônica”) e o que realizou o cineasta Libero Luxardo, especialmente em
“Um Dia Qualquer” (1962) e “Brutos Inocentes”(1973). Hoje circula um
documentário média metragem (55 minutos) e depois de lançado e exibido durante 3
dias no cinema Olympia deve ganhar mais tempo num cinema alternativo,
possivelmente o Libero Luxardo, do Centur.
“Carnaval Devoto” (Brasil, 2015) dirigido
por Regiana Queiroz foi realizado em
locações na cidade de Vigia e Belém durante a festa do Círio de Nazaré, em
outubro de 2012. A estrutura capta a obra de Dante Aliguieri, “A Divina
Comédia”, mostrando o caminho percorrido passando pelo inferno, pela agonia do
purgatório até o processo de redenção e alcance do céu, em uma analogia que
remete às manifestações profanas, festivas, alimentares, culturais, religiosas
que marcam essa festa paraense, registrada como o maior evento de devoção
católica do mundo e patrimônio Imaterial da Humanidade.
A ideia foi relacionar a manifestação
popular de gancho religioso com trechos de Dante, relatando a viagem do poeta
pelos reinos do inferno, purgatório e finalmente o Paraiso. Com esse módulo se
vê não só a exibição religiosa, mas as manifestações em paralelo, começando com
a famosa “Festa da Chiquita” que é realizada a partir do Bar do Parque na Praça
da Republica, no sábado em que se faz a trasladação da imagem da Virgem do
Colégio Gentil Bittencourt à Catedral de Belém (conhecida como a Sé). Passa
pelo carnaval, afiançando o titulo extraído de um texto do paraense Delcidio
Jurandir, usado por Isidoro Alves em seu trabalho de mestrado para o Museu
Nacional (RJ) e ainda por manifestações afro-brasileiras que foram vetadas pela
igreja católica em certo tempo.
O filme cria o diálogo entre as imagens
sempre tomadas com câmera na mão, a intertítulos em italiano com a tradução em
rodapé de trechos da Divina Comédia. Com isso se realiza numa linguagem barroca
o momento de uma manifestação de cunho religioso que se amplia no cenário de
uma jornada em caminho de um céu onde Dante acha a sua Beatriz e ajudado por São
Bernardo, intercede junto à Virgem Maria como um símbolo da fé.
A autora viu a procissão paraense
como uma jornada a se comparar com o que o poeta italiano escreveu. E procede a
forma de narrativa na evocação medieval do clássico literário. No filme está o
Círio numa dimensão inédita em cinema, sem ser apenas um retrato de uma
manifestação religiosa, mas um acontecimento amplo, abraçando um prisma
cultural que os entrevistados focalizam com muita propriedade. Há, inclusive, a
contrariedade de discursos onde se pronuncia uma evangélica sobre o culto á
imagem.
No recorte entre o religioso e o
profano, desmonta-se essa dicotomia hierárquica justamente pelo projeto da
autora em dimensionar o que leva os participantes do Círio de Nazaré à
convivência entre a fé que os emociona como pagadores de promessas e aquele que
também é o que pode estar na “festa da Chiquita” ou no bar, no CAN, ou na
convivência em múltiplos lugares. Encontrar o Círio é encontrar-se, também com
todas as ambiguidades de uma vida humana. Achei fantástica essa forma de tratar
o evento enquanto fato social que tem uma história, tem versões antropológicas,
mas evidencia a prática popular que enfrenta as normas e segue em frente.
Creio que “Carnaval Devoto” está
entre os mais felizes exemplos cinematográficos em torno do Círio de Nazaré.
Cabe muito bem estar em cartaz hoje quando só mesmo as salas culturais exibem
um tipo de cinema dedicado ao evento.
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