domingo, 15 de novembro de 2015

A ESCOLA RUSSA DE CINEMA E A CULTURA DOS NOVOS TEMPOS




É praxe uma crítica desinformada na sociedade ocidental deixar de lado os pontos fundantes do cinema russo, um dos mais importantes e mais antigos da História. É praxe, também, tratar das técnicas da montagem e da teoria estética da linguagem do cinema, reconhecendo a importância de dois cineastas-autores (chamo assim) russos que marcaram a revolução nessa arte, Serguei Eisenstein e Dsiga Vertov responsáveis por inscreverem mudanças nos padrões instituídos pelos demais cinemas já circulando mundialmente e que trouxeram marcantes posições. O estudioso dessa arte não pode restringi-los no processo geral da formação da linguagem tão somente porque incorreria em uma negação do que realmente representou, para a história da formação da cultura política, a presença do cinema de massas que vem ao lado da revolução russa.
O cinéfilo e o público em geral (até mesmo para mudar a desinformação) devem saber que após a Revolução de 1917 houve uma preocupação dos líderes revolucionários bolcheviques no poder, como Lênin e seus companheiros, em criar na cultura do status quo, outros meios que trouxessem a revolução das ideias do povo soviético intentando reverter o que até ali estava sendo visto como arte de um modo geral, quando outras cinematografias dominavam a circulação de seus meios culturais. Reformular isso e dar ciência do que estava ocorrendo entre a população explorada foi um dos passos principais para instruir a revolução cultural e escancarar a situação social que empobrecia e explorava economicamente aquele povo. O cinema estava nesse meio (é necessário conhecer as bases da doutrina marxista para reconhecer a tese e antítese que dariam forma à síntese dessa nova previsão para a cultura e a arte).
Dessa forma, Lênin procura reunir um grupo principal de realizadores colocando em suas mãos a invenção de nova maneira de “fazer cinema” criando meios a serem reconhecidos pela população sobre o antes tzarista e o hoje bolchevique, em torno da exploração e a pobreza e a provável mudança de hábitos na economia considerando a necessidade do coletivismo para avançar em novos planejamentos para a agricultura e a vivência digna naquela sociedade.
Dessa forma, após a Revolução de Outubro de 1917 há grande incentivo às produções cinematográficas com vistas na propaganda ideológica, valorizando-se e exaltando a força do povo em reerguer-se das trevas czaristas, produções que eram financiadas pelo Estado.
É preciso entender que a Rússia com a Primeira Grande Guerra, estava sufocada por uma massa de operários e camponeses sobrevivendo de forma degradante de trabalhos pesados e baixos salários, além de um governo opressivo. Com isso, levantam-se intelectuais e os populares e tomam o poder com a renúncia do czar [cf. primeiro a Revolução de fevereiro – março pelo calendário ocidental que derrubou o governo do czar Nicolau II e intentou estabelecer a república liberal; e a Revolução de Outubro – novembro -1917, com o partido bolchevique derrubando o Governo Provisório e instalando o governo socialista soviético].
Assim, ao reorganizar-se a cultura, o cinema é pensado por Lênin como um importante instrumento para levar a essa população o reconhecimento de suas mazelas e o que poderia usufruir com a mudança radical da economia. Cria o Comissariado de Educação que para ele, de todas as artes o cinema é a mais importante naquele momento para refletir a atualidade soviética, e chama alguns diretores para realizar filmes de propaganda ou, no meu entender, panfletos visuais, que possam mostrar com maior ênfase aquela realidade. Kuleshov (considerado o primeiro teórico a buscar uma estética da montagem, tendo ensinado na primeira escola de cinema de Moscou) e seus pupilos Einsenstein, Parajanov, Kalotosov, Pudovikine, Alesandrov começam a trabalhar a imagem dessa realidade subvertendo a fantasia que circulava com os filmes norte-americanos  e dai, organizam o novo cinema soviético.
Neste extenso preâmbulo, meu interesse é levar ao público espectador que está participando da MOSTRA MOSFILME 90 ANOS uma perspectiva divorciada de questões ideológicas que julgam esses primeiros filmes dessa escola como um tipo de propaganda comunista, sem peso de uma inovadora narrativa formal que engatinha e será celebrada com outros elementos de uma linguagem que marcará a história do cinema.
O filme “O Velho e o Novo” (URSS, 1929, 120 min., documentário) tem a direção de Sergei Eisenstein e Grigori Aleksandrov. Esta obra confronta o novo espírito do campesinato na recente URSS e as novidades que se revelam para a modificação dos antigos padrões da agricultura. No enfoque vê-se a instalação de uma desnatadeira e um trator que procuram estabelecer as novas ideias quebrando o já estabelecido.
Diz a Dra. Nanci de Freitas , Doutora em Teatro pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, e Professora do Departamento de Linguagens Artísticas do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no excelente texto O velho e o novo: tensão entre experimentação artística no cinema de Eisenstein e as demandas ideológicas soviéticas:
“A linha geral/O velho e o novo”, de 1929, trata das condições de trabalho numa fazenda comunitária, na União Soviética, em sua luta para a modernização dos meios de produção. A construção da sintaxe dramatúrgica do filme revela a tensão entre a experimentação estética de Eisenstein, com a montagem fragmentária, no auge do “cinema intelectual”, e a abordagem de conteúdos ideológicos, em composição baseada no princípio unificador e na totalidade dos significados da obra, sob a égide da censura do regime stalinista.” (p. 26. http://www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF22/freitas.pdf ) (...)
Não é uma obra que obedece a uma doutrinação externa - também um meio de mostrar uma realidade existente – mas principalmente para criar o olhar do novo num cenário estrutural que procura mudar as relações de poder. E as imagens do filme são contundentes para mostrar, primeiro a miséria, em seguida os aspectos  renovadores, depois a burocracia e a crítica aos poucos sendo dispensada para os que não reconhecem o meio de trabalho coletivo.
Ainda do texto de Nanci de Freitas este excerto revela o aspecto da trama do filme e a contribuição de Einsestei ao programa da contracultura czarista:
“O cineasta produziria, então, o filme A linha geral (em colaboração com Grigori Aleksandrov), apresentando, pela primeira vez, um enredo ficcional, conduzido por uma personagem individualizada. O filme é concebido a partir do olhar e dos sonhos de prosperidade da camponesa Marfa Lapkina, que assume a luta pela organização comunitária do trabalho e pelo acesso aos bens de produção tecnológica. É significativa a presença de uma mulher à frente dos trabalhos de uma cooperativa agrícola comunista, por representar, dialeticamente, o processo de superação do Estado patriarcal capitalista, apontando para uma forma de organização mais generosa e fraterna, que faz lembrar as antigas gens matriarcais, ligadas aos mitos da fertilidade da terra e da agricultura.”
A ênfase na figura feminina, no filme, é simbólica e, aquela altura desenvolve uma assertiva tenaz de fortalecer a relação da mulher-terra, mulher-mudança, mulher-confiança.
Os demais filmes dessa excelente Mostra Mosfilme 90 Anos devem ser vistos acompanhando-se não só o contexto histórico, mas o que deixaram de recriações e invenções para a relação entre imagens e ideias da sociedade.


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