É praxe uma crítica desinformada na
sociedade ocidental deixar de lado os pontos fundantes do cinema russo, um dos
mais importantes e mais antigos da História. É praxe, também, tratar das
técnicas da montagem e da teoria estética da linguagem do cinema, reconhecendo
a importância de dois cineastas-autores (chamo assim) russos que marcaram a
revolução nessa arte, Serguei Eisenstein e Dsiga Vertov responsáveis por
inscreverem mudanças nos padrões instituídos pelos demais cinemas já circulando
mundialmente e que trouxeram marcantes posições. O estudioso dessa arte não
pode restringi-los no processo geral da formação da linguagem tão somente
porque incorreria em uma negação do que realmente representou, para a história
da formação da cultura política, a presença do cinema de massas que vem ao lado
da revolução russa.
O cinéfilo e o público em geral (até
mesmo para mudar a desinformação) devem saber que após a Revolução de 1917
houve uma preocupação dos líderes revolucionários bolcheviques no poder, como
Lênin e seus companheiros, em criar na cultura do status quo, outros meios que trouxessem a revolução das ideias do
povo soviético intentando reverter o que até ali estava sendo visto como arte
de um modo geral, quando outras cinematografias dominavam a circulação de seus
meios culturais. Reformular isso e dar ciência do que estava ocorrendo entre a população
explorada foi um dos passos principais para instruir a revolução cultural e escancarar
a situação social que empobrecia e explorava economicamente aquele povo. O cinema
estava nesse meio (é necessário conhecer as bases da doutrina marxista para
reconhecer a tese e antítese que dariam forma à síntese dessa nova previsão para
a cultura e a arte).
Dessa forma, Lênin procura reunir um
grupo principal de realizadores colocando em suas mãos a invenção de nova
maneira de “fazer cinema” criando meios a serem reconhecidos pela população
sobre o antes tzarista e o hoje bolchevique, em torno da exploração e a pobreza
e a provável mudança de hábitos na economia considerando a necessidade do coletivismo
para avançar em novos planejamentos para a agricultura e a vivência digna
naquela sociedade.
Dessa forma, após a Revolução de Outubro
de 1917 há grande incentivo às produções cinematográficas com vistas na
propaganda ideológica, valorizando-se e exaltando a força do povo em
reerguer-se das trevas czaristas, produções que eram financiadas pelo Estado.
É preciso entender que a Rússia com a
Primeira Grande Guerra, estava sufocada por uma massa de operários e camponeses
sobrevivendo de forma degradante de trabalhos pesados e baixos salários, além de
um governo opressivo. Com isso, levantam-se intelectuais e os populares e tomam
o poder com a renúncia do czar [cf. primeiro a Revolução de fevereiro – março
pelo calendário ocidental que derrubou o governo do czar Nicolau II e intentou
estabelecer a república liberal; e a Revolução de Outubro – novembro -1917, com
o partido bolchevique derrubando o Governo Provisório e instalando o governo
socialista soviético].
Assim, ao reorganizar-se a cultura, o
cinema é pensado por Lênin como um importante instrumento para levar a essa
população o reconhecimento de suas mazelas e o que poderia usufruir com a
mudança radical da economia. Cria o Comissariado de Educação que para ele, de
todas as artes o cinema é a mais importante naquele momento para refletir a
atualidade soviética, e chama alguns diretores para realizar filmes de
propaganda ou, no meu entender, panfletos visuais, que possam mostrar com maior
ênfase aquela realidade. Kuleshov (considerado o primeiro teórico a buscar uma estética
da montagem, tendo ensinado na primeira escola de cinema de Moscou) e seus
pupilos Einsenstein, Parajanov, Kalotosov, Pudovikine, Alesandrov começam a
trabalhar a imagem dessa realidade subvertendo a fantasia que circulava com os
filmes norte-americanos e dai, organizam
o novo cinema soviético.
Neste extenso preâmbulo, meu interesse
é levar ao público espectador que está participando da MOSTRA MOSFILME 90 ANOS
uma perspectiva divorciada de questões ideológicas que julgam esses primeiros
filmes dessa escola como um tipo de propaganda comunista, sem peso de uma inovadora
narrativa formal que engatinha e será celebrada com outros elementos de uma
linguagem que marcará a história do cinema.
O filme “O Velho e o Novo” (URSS, 1929, 120 min., documentário)
tem a direção de Sergei
Eisenstein e Grigori Aleksandrov. Esta obra confronta o novo espírito do
campesinato na recente URSS e as novidades que se revelam para a modificação
dos antigos padrões da agricultura. No enfoque vê-se a instalação de uma desnatadeira
e um trator que procuram estabelecer as novas ideias quebrando o já
estabelecido.
Diz a Dra. Nanci
de Freitas , Doutora em Teatro pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas,
e Professora do Departamento de Linguagens Artísticas do Instituto de Artes da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no excelente texto O velho e o novo: tensão entre
experimentação artística no cinema de Eisenstein e as demandas ideológicas
soviéticas:
“A linha geral/O velho e o novo”, de
1929, trata das condições de trabalho numa fazenda comunitária, na União
Soviética, em sua luta para a modernização dos meios de produção. A construção
da sintaxe dramatúrgica do filme revela a tensão entre a experimentação
estética de Eisenstein, com a montagem fragmentária, no auge do “cinema
intelectual”, e a abordagem de conteúdos ideológicos, em composição baseada no
princípio unificador e na totalidade dos significados da obra, sob a égide da
censura do regime stalinista.” (p. 26. http://www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF22/freitas.pdf
) (...)
Não
é uma obra que obedece a uma doutrinação externa - também um meio de mostrar
uma realidade existente – mas principalmente para criar o olhar do novo num
cenário estrutural que procura mudar as relações de poder. E as imagens do
filme são contundentes para mostrar, primeiro a miséria, em seguida os
aspectos renovadores, depois a
burocracia e a crítica aos poucos sendo dispensada para os que não reconhecem o
meio de trabalho coletivo.
Ainda
do texto de Nanci de Freitas este excerto revela o aspecto da trama do filme e
a contribuição de Einsestei ao programa da contracultura czarista:
“O cineasta produziria, então, o filme
A linha geral (em colaboração com Grigori Aleksandrov), apresentando, pela
primeira vez, um enredo ficcional, conduzido por uma personagem
individualizada. O filme é concebido a partir do olhar e dos sonhos de
prosperidade da camponesa Marfa Lapkina, que assume a luta pela organização
comunitária do trabalho e pelo acesso aos bens de produção tecnológica. É
significativa a presença de uma mulher à frente dos trabalhos de uma
cooperativa agrícola comunista, por representar, dialeticamente, o processo de
superação do Estado patriarcal capitalista, apontando para uma forma de
organização mais generosa e fraterna, que faz lembrar as antigas gens
matriarcais, ligadas aos mitos da fertilidade da terra e da agricultura.”
A ênfase na figura feminina, no filme,
é simbólica e, aquela altura desenvolve uma assertiva tenaz de fortalecer a
relação da mulher-terra, mulher-mudança, mulher-confiança.
Os demais filmes dessa excelente
Mostra Mosfilme 90 Anos devem ser vistos acompanhando-se não só o contexto histórico,
mas o que deixaram de recriações e invenções para a relação entre imagens e
ideias da sociedade.
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