quinta-feira, 7 de abril de 2016

“A BRUXA” E A MISTICA DO MEDO



Uma das sequencias da relação entre os gêmeos e o bode Black Phillips. "A Bruxa" (The Wich, EUA, 2015)

Desde criança incorporam-se pensamentos e valores que circulam no coletivo social onde vivemos. Alguns são desfeitos outros seguem ou nos perseguem vida a fora. A figura da bruxa está neste rol e faz parte da composição de um tipo assegurado pelo imaginário social na representação da imagem de uma mulher com forças sobrenaturais responsável pela criação de malefícios, expressando dons de prever o futuro, de produzir efeitos danosos onde a ação da feitiçaria determina a sua afinidade com o mal. Geralmente é por ai. Neste preâmbulo se ajustam minhas versões nos títulos de filmes que favorecem essa figura.
Recentemente “A Bruxa” (The Witch, EUA, Canadá, 2015), exibido entre nós, trazia a impressão ao público espectador de que se tratava de um filme de terror com ênfase na “bruxa”. Ao assisti-lo, minha avaliação deslocou para outras evidências sobre a figura porque não foi possível identificar no filme o que o imaginário repetia. Assim, vou me reportar ao que avaliei sobre o modo como o argumento evidenciou o enredo e de que forma este foi reproduzido através do roteiro e da direção, criando uma maneira de ver outros elementos não circunscritos a esse gênero no cinema.
Na primeira sequência a tomada da câmera capta, por trás, um grupo de pessoas numa reunião estilo tribunal, onde uma família de colonos ingleses estabelecidos na Nova Inglaterra, nos EUA, no século XVII (início da de década de 1630) é acusada de heresia por se desviar da religiosidade padrão, sendo banida da plantação onde vivia sob a justificativa de que essas novas práticas se tornam ameaças graves ao desempenho social da comunidade. O chefe da família, William (Ralph Ineson) tenta apresentar sua defesa, mas não é aceita pelos que o julgam, então, ao lado da esposa, Katherine (Kate Dickie), estes puritanos partem para o interior da região, levando seus cinco filhos: Thomasin (Anya Taylor-Joy), Caleb (Harvey Scrimshaw), os gêmeos Mercy (Ellie Grainger) e Jonas (Lucas Dawson). Uma carroça com seus poucos pertences deixa a vila e se encaminha para uma clareira em frente a uma floresta, onde se estabelecem. O lugar é árido, inóspito, com o plantio da agricultura que iniciam demonstrando que a terra onde estão não será favorável ao plano que definiram de sobreviverem da venda do produto colhido para ser comercializado na cidade.
Na sequência, o filme aponta os resultados trágicos do plantio onde as condições da natureza se tornam ambientes suscetíveis à degradação do produto que está sendo semeado não gerando o excedente para a venda e nem o necessário para a sobrevivência familiar.
Ao lado desses fatos, outros incidentes se incorporam, como o desaparecimento inexplicável do bebê que está sob a guarda da filha Thomasin, a parceria dos gêmeos em brincadeiras chamando a irmã de bruxa pelo incidente com o bebê e, mais tarde, a insistência destes em considerar esta brincadeira como uma sugestão do animal que os acompanha, um bode de nome Black Phillip; e o adoecimento da mãe pela perda do filho e por todas as situações que gradativamente se instalam entre eles e tendem a separa-los. As intrigas, por esses fatores, a posição afetiva que se deteriora (pelo menos, entre a mãe e a filha e entre esta e os gêmeos) e as funções agrícolas de cada um são fortes indícios de que se houve esperança de que a situação desse novo lar traria benefícios não está mais tão confiável. O prosseguimento nesse cotidiano tende a mostrar-lhes que apesar das rezas e da resignação pregada pelo chefe da família há dissociação entre eles pelo isolamento e pelo silêncio que guardam sobre o sofrimento e a imposição mística do pai com aceitação da mãe aos acontecimentos. Repercute entre eles o estribilho do chefe de que o que sofrem é porque são castigos de Deus, por serem culpados pela falta de amor e do reconhecimento da fé na providência divina, pela desobediência secreta dos filhos quanto às ordens dos pais. Julgam-se submetidos às forças sobrenaturais presentificadas pela descrença e inexistência da fé.
É nesse clima que o filme se traduz enquanto processo narrativo. No foco linear sobre um percurso cotidiano familiar onde se fazem presentes as funções do trabalho na plantação e no trato dos animais da pequena moradia, incorpora-se um novo componente que atormenta: a descoberta da floresta como espaço proibido. Mas visitado pela filha Thomasin e pelo irmão Caleb, primeiro na busca pelo irmãozinho desaparecido e em seguida, pela vontade de desbravar e descobrir o que existe por lá que motiva a versão do pai sobre as forças sobrenaturais lá existentes. Embora insinuando o medo à floresta ele a frequenta em busca de produtos para comercializar, mas escondendo dos demais familiares.
A representação de William é da imagem de um líder que define o que toda a família pode ou não pode fazer. Define o temor à Deus, o pecado, a culpa, a mística do medo através desse discurso. Mas que tem o subterfugio de um jogo como meio de conquistar o respeito e desbravar a natureza. A floresta é o maior ímã dos medos pelos sons desconhecidos onde gritos e sussurros são ouvidos. E nas escapadas de Caleb e Thomasin estes se defrontam com imagens femininas e ou masculinas que os levam a lugares desconhecidos, arquétipos de grutas singulares, assim sendo, a floresta se torna o lugar dos bruxedos, dos encantados, que se deslocam também para o círculo dos animais domésticos transformados em seres fantásticos.
O clima promovido pela narrativa de “A Bruxa” é de um tom solene, explorando o sombrio ambiental em que os efeitos físicos se agrupam entre o sentido existente explorado e a ação, criando-se a analogia raciocinada com os acontecimentos. Não há efeitos digitais. A cor usada repercute nas perspectivas de pintura esmaecida. No primeiro bloco do filme há o desenrolar dos fatos com o posicionamento psicológico na antevisão do espectador pelo que ocorrerá. O medo que sustenta todo o processo de evidencias dos fatos, vem no segundo bloco do filme, extraído do isolamento construído pela ideia que se faz tanto de uma floresta fechada, como pelas circunstâncias do enfoque sobre os animais comuns e o relacionamento conflituoso entre estes e os humanos ao avançar da convivência explorada na trama. Há planos oníricos tanto das visões de Thomasin, na floresta, quanto no reaparecimento de Caleb, tomado por convulsões e totalmente nu, e o momento em que a mãe amamenta um corvo. Recortes apresentados com precisão cirúrgica sobre a tensão psicológica das sequencias finais, trabalhadas pelo roteiro, que intensificou a representação fantástica demonstra a essencialidade humana do conflito. Os personagens são os próprios responsáveis pela culpa desde o nascimento.
Na fotografia, o uso de velas no interior da casa e luzeiros tradicionais no ambiente noturno oferece o climax da solidão, da expectativa do silêncio tornando-se mais um veio do medo. Sem sustos e sem personagens bombásticos de efeitos especiais o que é possível extrair do filme é a certeza de que o terror não se dá por essas vias, mas pela dependência entre os personagens e os ambientes em que circulam e como circulam. No caso de “A Bruxa” o dramático se dá pela mística do medo em um Deus que domina os castigos e pela tendência à considerar os fenômenos da natureza com a essência do sobrenatural.
O quadro composto pelo diretor e roteirista Robert Eggers com excelente definição do suspense psicológico enfrentou as grandes manufaturas dos filmes de terror e disse “o medo não está nos artefatos digitais, mas na fonte dos conflitos humanos”.


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