Uma das sequencias da relação entre os gêmeos e o bode Black Phillips. "A Bruxa" (The Wich, EUA, 2015)
Desde
criança incorporam-se pensamentos e valores que circulam no coletivo social
onde vivemos. Alguns são desfeitos outros seguem ou nos perseguem vida a fora.
A figura da bruxa está neste rol e faz parte da composição de um tipo
assegurado pelo imaginário social na representação da imagem de uma mulher com
forças sobrenaturais responsável pela criação de malefícios, expressando dons
de prever o futuro, de produzir efeitos danosos onde a ação da feitiçaria
determina a sua afinidade com o mal. Geralmente é por ai. Neste preâmbulo se
ajustam minhas versões nos títulos de filmes que favorecem essa figura.
Recentemente
“A Bruxa” (The Witch, EUA, Canadá, 2015), exibido entre nós, trazia a impressão
ao público espectador de que se tratava de um filme de terror com ênfase na
“bruxa”. Ao assisti-lo, minha avaliação deslocou para outras evidências sobre a
figura porque não foi possível identificar no filme o que o imaginário repetia.
Assim, vou me reportar ao que avaliei sobre o modo como o argumento evidenciou
o enredo e de que forma este foi reproduzido através do roteiro e da direção,
criando uma maneira de ver outros elementos não circunscritos a esse gênero no
cinema.
Na
primeira sequência a tomada da câmera capta, por trás, um grupo de pessoas numa
reunião estilo tribunal, onde uma família de colonos ingleses estabelecidos na
Nova Inglaterra, nos EUA, no século XVII (início da de década de 1630) é
acusada de heresia por se desviar da religiosidade padrão, sendo banida da
plantação onde vivia sob a justificativa de que essas novas práticas se tornam
ameaças graves ao desempenho social da comunidade. O chefe da família, William
(Ralph Ineson) tenta apresentar sua defesa, mas não é aceita pelos que o
julgam, então, ao lado da esposa, Katherine (Kate Dickie), estes puritanos
partem para o interior da região, levando seus cinco filhos: Thomasin (Anya
Taylor-Joy), Caleb (Harvey Scrimshaw), os gêmeos Mercy (Ellie Grainger) e Jonas
(Lucas Dawson). Uma carroça com seus poucos pertences deixa a vila e se
encaminha para uma clareira em frente a uma floresta, onde se estabelecem. O
lugar é árido, inóspito, com o plantio da agricultura que iniciam demonstrando
que a terra onde estão não será favorável ao plano que definiram de
sobreviverem da venda do produto colhido para ser comercializado na cidade.
Na
sequência, o filme aponta os resultados trágicos do plantio onde as condições
da natureza se tornam ambientes suscetíveis à degradação do produto que está
sendo semeado não gerando o excedente para a venda e nem o necessário para a
sobrevivência familiar.
Ao
lado desses fatos, outros incidentes se incorporam, como o desaparecimento
inexplicável do bebê que está sob a guarda da filha Thomasin, a parceria dos
gêmeos em brincadeiras chamando a irmã de bruxa pelo incidente com o bebê e,
mais tarde, a insistência destes em considerar esta brincadeira como uma
sugestão do animal que os acompanha, um bode de nome Black Phillip; e o
adoecimento da mãe pela perda do filho e por todas as situações que
gradativamente se instalam entre eles e tendem a separa-los. As intrigas, por
esses fatores, a posição afetiva que se deteriora (pelo menos, entre a mãe e a
filha e entre esta e os gêmeos) e as funções agrícolas de cada um são fortes
indícios de que se houve esperança de que a situação desse novo lar traria
benefícios não está mais tão confiável. O prosseguimento nesse cotidiano tende
a mostrar-lhes que apesar das rezas e da resignação pregada pelo chefe da
família há dissociação entre eles pelo isolamento e pelo silêncio que guardam
sobre o sofrimento e a imposição mística do pai com aceitação da mãe aos
acontecimentos. Repercute entre eles o estribilho do chefe de que o que sofrem
é porque são castigos de Deus, por serem culpados pela falta de amor e do
reconhecimento da fé na providência divina, pela desobediência secreta dos
filhos quanto às ordens dos pais. Julgam-se submetidos às forças sobrenaturais
presentificadas pela descrença e inexistência da fé.
É
nesse clima que o filme se traduz enquanto processo narrativo. No foco linear
sobre um percurso cotidiano familiar onde se fazem presentes as funções do
trabalho na plantação e no trato dos animais da pequena moradia, incorpora-se
um novo componente que atormenta: a descoberta da floresta como espaço
proibido. Mas visitado pela filha Thomasin e pelo irmão Caleb, primeiro na
busca pelo irmãozinho desaparecido e em seguida, pela vontade de desbravar e
descobrir o que existe por lá que motiva a versão do pai sobre as forças
sobrenaturais lá existentes. Embora insinuando o medo à floresta ele a
frequenta em busca de produtos para comercializar, mas escondendo dos demais
familiares.
A
representação de William é da imagem de um líder que define o que toda a
família pode ou não pode fazer. Define o temor à Deus, o pecado, a culpa, a
mística do medo através desse discurso. Mas que tem o subterfugio de um jogo
como meio de conquistar o respeito e desbravar a natureza. A floresta é o maior
ímã dos medos pelos sons desconhecidos onde gritos e sussurros são ouvidos. E
nas escapadas de Caleb e Thomasin estes se defrontam com imagens femininas e ou
masculinas que os levam a lugares desconhecidos, arquétipos de grutas
singulares, assim sendo, a floresta se torna o lugar dos bruxedos, dos
encantados, que se deslocam também para o círculo dos animais domésticos
transformados em seres fantásticos.
O
clima promovido pela narrativa de “A Bruxa” é de um tom solene, explorando o
sombrio ambiental em que os efeitos físicos se agrupam entre o sentido
existente explorado e a ação, criando-se a analogia raciocinada com os
acontecimentos. Não há efeitos digitais. A cor usada repercute nas perspectivas
de pintura esmaecida. No primeiro bloco do filme há o desenrolar dos fatos com
o posicionamento psicológico na antevisão do espectador pelo que ocorrerá. O
medo que sustenta todo o processo de evidencias dos fatos, vem no segundo bloco
do filme, extraído do isolamento construído pela ideia que se faz tanto de uma
floresta fechada, como pelas circunstâncias do enfoque sobre os animais comuns
e o relacionamento conflituoso entre estes e os humanos ao avançar da
convivência explorada na trama. Há planos oníricos tanto das visões de
Thomasin, na floresta, quanto no reaparecimento de Caleb, tomado por convulsões
e totalmente nu, e o momento em que a mãe amamenta um corvo. Recortes
apresentados com precisão cirúrgica sobre a tensão psicológica das sequencias
finais, trabalhadas pelo roteiro, que intensificou a representação fantástica
demonstra a essencialidade humana do conflito. Os personagens são os próprios
responsáveis pela culpa desde o nascimento.
Na
fotografia, o uso de velas no interior da casa e luzeiros tradicionais no
ambiente noturno oferece o climax da solidão, da expectativa do silêncio
tornando-se mais um veio do medo. Sem sustos e sem personagens bombásticos de
efeitos especiais o que é possível extrair do filme é a certeza de que o terror
não se dá por essas vias, mas pela dependência entre os personagens e os
ambientes em que circulam e como circulam. No caso de “A Bruxa” o dramático se
dá pela mística do medo em um Deus que domina os castigos e pela tendência à
considerar os fenômenos da natureza com a essência do sobrenatural.
O
quadro composto pelo diretor e roteirista Robert Eggers com excelente definição
do suspense psicológico enfrentou as grandes manufaturas dos filmes de terror e
disse “o medo não está nos artefatos digitais, mas na fonte dos conflitos
humanos”.
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