No dia de hoje, 24 de abril, o Olympia comemora
seus 105 anos. Esse cinema presenciou a circulação de muitas gerações de
paraenses. Sua história faz parte da história social e cultural de Belém. O ano
de sua inauguração – 1912 – prenuncia-se de crises, uma delas deflagrada em
agosto desse ano, os conflitos políticos que culminaram com a queda da
oligarquia de Antonio Lemos diante do grupo de Lauro Sodré. Era o cinema da
elite e o lugar em que as famílias abastadas dividiam suas horas de lazer com o
teatro e as festas nos grandes clubes sociais. Era o lugar onde as mulheres da
“alta” exibiam seus vestidos e suas jóias, os homens mediam o seu poder pela
riqueza ostentada, as “cocotes” testavam o silêncio social sobre elas e as
pessoas mais pobres ficavam no “sereno” olhando o desfile destes freqüentadores
da casa de espetáculos. Havia também outras imagens femininas circulando por
esse espaço: as atrizes que representavam seus papéis nos filmes cujo enredo
saia dos dramas folhetinescos da ocasião.
Esta
abordagem espera evidenciar as imagens femininas transformadas em “musas do
Olympia”. Por que musas? Este termo refere-se à “divindade inspiradora da
poesia”. No caso deste recorte sobre o Olímpia, as “musas” inspiram a memória dos
acontecimentos de uma época em que os modelos de comportamento das mulheres
seguiam os costumes impostos ao seu gênero, os modos e as modas organizavam o
sistema social que recebia influência, mas também influenciava. Sobre as modas
vou tratar dos trajes que eram usados pelas mulheres e sobre os modos, será evidenciada a versão
sobre os comportamentos das mulheres.
A pesquisa
No desenvolvimento de um estudo sobre mulher
e política em Belém, nas primeiras décadas deste século, uma presença pontual
em todas as informações recolhidas era a do Cinema Olímpia. Os/as informantes,
ao discorrerem sobre o seu cotidiano na cidade, após 1912, relacionavam alguma
situação ocorrida e/ou que marcara a sua convivência na cidade e o Olímpia. Este
detalhe configurou a importância que o cinema representara na vida das pessoas.
As mulheres diferiam dos homens quando relatavam sua presença nas sessões do
cinema e isto me levou a investir em saber como seria a
representação da imagem de uma
mulher da elite paraense nessas primeiras décadas do século XX.
Na reconstrução da representação
feminina paraense, não se pode perder de vista o vínculo umbilical do Norte
brasileiro com a cultura européia, além das interferências do movimento
colonizador português, que manteve uma proximidade quase visceral entre o Pará
e a Metrópole. Também não se pode perder de vista a expansão imperialista da França
e da Alemanha já em embrião, nos meados do século XIX, mas com forte e
agressiva penetração, através da competição do mercado brasileiro e as
principais fontes de matérias primas para seus parques industriais. Esse domínio
refletia e influenciava a organização social da cidade, garantindo a tendência
europeizada da representação da elite feminina daquele período.
Em que pese, contudo, a agressiva
penetração francesa em nosso meio, definindo papéis sociais e construindo um
forte domínio na comercialização de seus produtos em relação
à moda feminina e masculina, aos modismos e determinando
a literatura que era consumida, a penetração econômica inglesa também foi marcante e influente na nossa formação
sócio-histórica.
A imprensa
era o meio de comunicação existente no período, fazendo circular as notícias
entre os
membros da sociedade que tinham maior poder aquisitivo. Para essa
classe, aliás, a imprensa representava
um padrão de formação cultural como agenciador da força
política local, como divulgador popular dos romances folhetinescos quase sempre
assinados por autores franceses e/ou
das produções literárias dos
autores locais. Servia ainda como mecanismo
de controle dos comportamentos dos
sujeitos sociais, homens e
mulheres e, principalmente, sobre estas, mantinha um modelo que orientava
os comportamento ao representar o imaginário feminino de uma classe que detinha
o poder econômico, o poder político e o saber, sobre os demais membros da
sociedade.
A moda
Altas e esbeltas, gordas ou magras,
medianas ou baixinhas, as mulheres da elite paraense procuravam vestir-se bem,
dentro da moda parisiense, criando um tipo para cada ocasião. Em cada reforma
do vestuário, expressam um determinado período histórico. Tanto é assim que
afirma João Affonso do Nascimento (Três
Séculos de Moda):
“Antes de transcorrida a primeira década
do século XX, já os trajes das senhoras haviam passado por considerável mudança.
(...)”.
É assim que se vê ressuscitar o vestido
chamado "a Império": cintura logo abaixo das axilas, mangas curtas,
saia esguia como uma bainha, e quase inteiramente lisa. Mas liso e mais simples
ainda, principalmente no inverno, para sair à rua e para viagem, é o vestido
"tailleur" de linhas sóbrias, corte severo, fazendas pesadas, de
cores escuras em tons neutros, casacos amplos, apenas guarnecidos de botões,
saias sem o menor enfeite. (...)
Por volta de 1910, cabe ao chapéu das
damas salientar-se por uma desmedida enormidade, pela extravagância do feitio.
Abas imensas, e, muito pior, alguns com as copas três vezes mais feios do que
quando, por minúsculos, pousavam apenas no alto do penteado." (...)”
O comprimento das saias, nos tornozelos,
mostrando apenas as pontas dos sapatos abotinados. O "tailleur" para
"sair à rua e para a viagem", onde pontificam exigências à
"sobriedade", na linha de "corte severo", na cor
"escura", no tipo de fazenda "pesada", e sem o "menor
enfeite", determinam um tipo de comportamento esperado das mulheres que
transitam no espaço público. Estas, entretanto, vingam-se do comedimento do
vestuário ao usarem os "extravagantes chapéus" de "abas imensas", considerados
"mais feios" do que os usados anteriormente, "minúsculos",
possivelmente sem "chamar atenção" de ninguém.
A
influência da guerra, na moda feminina, dispõe os modelos de vestidos bem
"ao gosto militar da época", onde sobressaem os dólmãs enfeitados de
gales e alamares usados com "barretinhas coroadas de penachos de rabo de
galo". Contudo, nesse período, outras modificações são observadas pelo
autor:
"As saias sobem, muito além dos
limites traçados às de 1810 e 1830, os decotes descem, mais do
que poderia permitir a simples e
honesta decência; suprimem-se as mangas, e até mesmo, nos vestidos de baile, as sumárias alças que, à
guisa de suspensórios, passando por cima dos ombros, sustentariam o corpete. E
nada protege os braços, totalmente nus. As luvas, outrora complemento obrigatório
do vestuário de uma senhora que se prezasse, as luvas, que, no caso em apreço,
seriam bastante longas, - de pelica
ou de malha de seda - indo acima
dos cotovelos, são dispensadas: trazem-se séries de braceletes, colocados em
várias alturas, à maneira das orientais, - de ouro, de prata, de maneiras diversas, de osso, de vidro, de celulóide, de
tartaruga. (...) Há também os
vestidos, se vestido se pode chamar à vestimenta sem
cintura, ampla e livre dos ombros aos
pés (alguma coisa acima, valha a verdade), muito parecida com uma camisola de bebê ou um
penteador, com que algumas mulheres não hesitam em sair à rua, trajando aquilo
que antigamente só usavam na intimidade de alcova ou do toucador. (...)"
A descrição da moda deste período traz
censuras do autor aos novos modos femininos. Saias curtas, os decotes e as
mangas dos vestidos do tipo "camisola", considerados ousados, ferem a
"honesta decência" esperada no comportamento das mulheres que
"não hesitam em sair à rua" nesses trajes, usados antigamente somente
na privacidade, ou seja, "na intimidade de alcova ou do toucador". Os
tecidos utilizados na confecção desses trajes femininos, são reveladores dos
novos tempos, contribuindo com a quebra da "decência" esperada às
mulheres:
"As fazendas leves, transparentes, 'sans dessous' (sem forro) revelam
indiscretamente as mais recônditas linhas do corpo, provocando comentários
maldosos e idéias concupiscentes; proporcionando, também, algumas decepções,
quando se esbarra pela frente com uma velhota mais madura - e que antes disso,
vista pelas costas, ao 'vieux marcheur'
se afigura elegante mínima."
Quer sejam as linhas do corte, quer
sejam tipos de tecidos usados pelas mulheres desse período são contraposições
ao modelo anterior onde os "tailleurs" sobressaíam. O contorno
do corpo feminino, nesses novos
trajes, provoca "comentários maldosos e idéias concupiscentes". Quem
é provocado? Os homens? As mulheres? Ou toda a sociedade? Aliás, essa
"moda provocante" é
assumida pelas mulheres
da elite de todas
as idades, até
pela "velhota mais
madura" que, deslumbrada, mesmo "vista pelas costas". À vista
dessa "generalização", ou seja, à vista da ineficiência da censura
exercida contra a ousadia
feminina, nos trajes usados publicamente, restringe-se às
"mais bonitas" o "andar na moda":
"... sob o
reinado de uma moda que põe tudo
à mostra, seria de supor que certas pessoas mal aquinhoadas pela natureza,
modificassem o seu traje de maneira a
ocultar as deficiências, ou as
deformações do seu corpo. Nada disso. Contanto que andem no rigor,
corajosamente patenteiam as pernas tortas, arqueadas, dessas
chamadas "de vaqueiro",
ou uma fina e outra grossa, por efeito
de varizes; braços de vaqueta, clavículas salientes, e outras desvantagens
físicas. É talvez caso de dar parabéns
aos candidatos ao casamento: ante uma tal franqueza, não se poderão
queixar de que foram iludidos pelas aparências favorecidas pelos artifícios,
comprando gato por lebre."
Mesmo
em desvantagem, as mulheres enquadradas no modelo estereotipado de
"mal aquinhoadas pela natureza",
consideradas "sem
atrativos", demonstram "coragem" ao vestirem estes trajes da
moda, visto que se "desnudam" inteiramente, diante dos
seus parceiros, no jogo
matrimonial. A estes, é cobrada
uma postura agressiva frente à
"uma moda que põe tudo à mostra".
Como "candidatos ao casamento", - uma "função"
esperada na sociedade -, exige-se deles interferência no recato feminino
necessário à identidade familiar. Neste modelo matrimonial, o imaginário
masculino patriarcal cria a imagem
da mulher virtuosa, honesta,
virgem e pura para desempenhar tarefas
no espaço doméstico. O recato feminino, portanto,
deverá ser uma exigência do homem, mesmo à custa de sua ilusão quanto aos
tributos físicos da esposa.
A identidade feminina que prevalece no
imaginário social desse período é
a da jovem
cuja educação e socialização recebidas,
quer na família, quer na escola,
tem por objetivo a prática do
lar que ela
deverá orientar e dirigir, ao
casar-se. O desempenho do novo papel de esposa-mãe-dona-de-casa, exige, entretanto, atributos de pureza,
virgindade, castidade, honestidade,
moral, daí porque, as modas "despudoradas"
- expondo o corpo feminino - são censuradas e desvalorizadas. Proíbem-se
determinadas leituras de romances onde o tema possa influir na
manifestação de comportamentos
contrários às normas assépticas da "virgem esposa" e "mãe
honesta", assegurando-se o prestígio da mulher "casadoira",
ao nível da ignorância
sobre assuntos de um cunho sexual ou que não estejam compatíveis com a
responsabilidade idealizada para ela dentro do casamento.
Os namoros e o casamento
Os namoros ainda sofriam restrições por
parte dos pais, daí porque, ainda podem ser encontrados os célebres
"gargarejos". Mão dadas, passeio de bonde, conversas na janela e na
sala de casa, os namoros, entretanto, permanecem sob estreita vigilância e,
necessariamente, a contravenção e burla das regras rígidas das relações entre
os sexos.
Festas beneficentes, grandes quermesses
no Bosque, freqüência às sessões promovidas pelas associações filantrópicas e
religiosas, contribuem também como os lugares das trocas matrimoniais, do
exercício de um papel - a mulher casadoira, contracenando com o homem
conquistador e conquistado... Era ultradesejável o casamento para a mulher,
algumas fugiam ao destino manifesto...
As informantes, de um modo geral, são
unânimes em afirmar que o estado "natural" feminino era o casamento e
a sua consumação, através da procriação. A preparação da mulher para a vida
doméstica dava-se, no seu relacionamento familiar. Na versão de Flaviana
Guimarães, o comportamento das mulheres de sua classe era da seguinte ordem:
"A mulher, a moça, era presa pelos
pais. Ela namorava sem consentimento, embora, às vezes, o namoro fosse
escondido, que isso é de todos os tempos, né? Mas não saía só. Tinha que sair
acompanhada. (...) Então a moça que queria estar na sociedade, tinha que
apresentar um comportamento muito sério, muito bom, para não sofrer os
dissabores de comentários. (...) Ela estudava línguas ou fazia qualquer coisa
em casa, que agradasse, mas elas não trabalhavam (fora). Às vezes, diziam: Ah!
você trabalha?! E a moça encabulada dizia: não! A moça ficava em casa, às vezes
ajudando a mãe (...) Mas na sociedade (fora de casa) elas se apresentavam bem
quietas. Os rapazes pediam o consentimento para dançar, não é como hoje que
eles fazem um sinal de longe e a mulher corre; era muito diferente. Eu ainda
fui do tempo de 'carné de baile'. (...) A mulher era muito submissa, ela se
educava para ser submissa. Qualquer coisa, se dizia: 'você já é uma mulher
casada!' (...)
Namorávamos muito de janela. A moça
ficava na janela, ele ficava em baixo. Havia os rapazes que iam na casa das
famílias quando davam reuniões. Aí eles eram mais folgados... (...) A mulher
'da alta' não trabalhava. (...) Eu já tinha uma idade regular quando fui
trabalhar. (...) Eu não pensava em trabalhar porque eu não queria ser
desprezada pela sociedade. Eu fazia questão de ficar ali, junto da família. (...)"
O discurso feminino da mulher da classe
alta ressalta uma atitude de submissão familiar e doméstica das mulheres
paraenses dessa classe, amedrontadas com o "desprezo social" votado
contra si por suas companheiras, caso estas a percebessem num trabalho
remunerado fora do lar. "Estar na sociedade" era submeter-se a regras
para não ser "mal vista", "mal falada". O que seria isso?
Possivelmente, um mecanismo ideologizado, permeando os comportamentos femininos
da elite. Iniciadas culturalmente através de uma "instrução de luxo",
onde o estudo das
línguas estrangeiras e a arte musical (piano, canto, instrumentos de pau
e corda) pontificavam como fundamentais na educação da mulher "da
alta", esta poderia, entretanto, ficar em casa ajudando a mãe, apresentando-se
"bem quietas" na "sociedade" (no espaço público, na rua, à
vista dos outros), pois, a "submissão" que a atingia era exigência e
interdito de outro papel que ela poderia exercer, no casamento, daí porque o
dito exclamativo "você já é uma mulher casada!" - Representava uma
forma de censura a qualquer atitude menos "matrimonial."
Como
se vê, o código a que estavam enquadradas as mulheres, pelo menos as das
classes economicamente mais abastadas, exigia uma maior privacidade das
atitudes femininas, onde o medo dos prováveis "desvios" exercia forte
pressão contra um comportamento considerado "ilícito". As mulheres
paraenses não poderiam estar somente "imaginando" uma orientação, uma
norma, ou impondo-se um comportamento. A "ordem matrimonial" exigia
delas um perfeito estatuto de "donas de casa" com quase que total
exclusão do espaço público, onde somente transitavam "acompanhadas",
ou dos irmãos, ou do marido, ou de uma outra mulher, quase sempre mais velha.
As "prendas domésticas" eram, portanto, a referência maior para o
domínio do espaço privado.
O comportamento norteador da moralidade
feminina para o casamento estabelecia a virgindade como padrão de pureza e
sobre este atributo mantinham-se os interditos normativos, quer religioso, quer
legais, para impedir as "práticas perigosas" que desviassem a mulher
do seu "caminho natural". Por esse motivo, eram vistos com reservas
os empregos fora de casa, o trabalho remunerado, os passeios desacompanhados. Incluíam-se
aí, outras regras:
"...
a sociedade era comandada por aquela norma, que era uma só, era aquela que
ditava o comportamento humano, era aquela que ensinava a mocinha a sentar,
resguardando o joelho ou a vestir um vestido bem composto, ou a sair ou não
sair só. É claro que houve exceções ou rupturas, houve mocinhas que saíram de
casa, se perderam, que preferiram, digamos assim, o risco de uma aventura. De
fato, a predominância em torno do nome da família era enorme. Houve um caso em
minha família que ficou como um marco na minha vida, foi uma tristeza na minha
vida."
A recorrência encontrada nos
depoimentos, quanto ao tema, "mulher feita para casar", quer
expressar um discurso "aprendido", mas nem sempre observado, pois,
não só algumas das entrevistadas não haviam casado, embora reproduzissem oralmente
o "preceito" instituído, como
através dos números do Censo de 1920 percebe-se que cerca de 361.030 mulheres
constavam entre as solteiras, contra 89.079 casadas, de uma população de
983.507 habitantes no Estado do Pará. Por outro lado, outros indícios de
transigência ao modelo "matrimonial doméstico" evidenciam algumas
"brechas", no retrato reconstituído pelos informantes, quando ouve-se
exclamações do tipo:
"Geralmente
a gente comprava as acompanhantes!" (Flaviana Guimarães)
O que isso queria representar, na
expressão de uma mulher à classe dominante de uma sociedade tradicionalmente
católica, onde os padrões morais e comportamentais seguiam uma linha
formalmente patriarcal? Em que consistia "comprar as acompanhantes"?
Na versão de Flaviana Guimarães, essa prática queria dizer "falar com o
namorado no cinema", "sair de casa para a igreja e emendar o caminho
para outros lugares".
As
normas matrimoniais eram rígidas nesse tempo, conforme notado através dos
depoimentos dos entrevistados. Isto não
quer dizer que não pudessem ser violadas, algumas vezes:
"Duas
amigas minhas fugiram para a casa do namorado e lá ficaram algum tempo até
fazerem as pazes com os pais. Mas geralmente elas tinham que sair da casa
paterna. Eu estou falando da 'alta'. Na outra classe, eram menos rígidos."
O registro da informante representa a
presença de um padrão de ritos a serem seguidos pelas jovens da classe alta,
onde um modelo referenciava as fases que deveriam permear o período anterior ao
enlace matrimonial de tipo endogâmico. Mas há rupturas ao tipo:
"A
filha do Dr. MacDowell casou-se com um espanhol que chegou por aqui. A família
fez uma oposição tremenda, mas ela se manteve, acabou se casando com ele.
(...)”
Que preceitos estariam na base de uma
construção matrimonial exogâmica? Que limites seriam interpostos a uma
proximidade maior entre os familiares da jovem casada e o novo e estranho,
integrante da "casta"? Depreende-se, de uma ruptura dessas, que,
embora houvesse "rigidez" na observância aos ritos tradicionais
pré-nupciais, a fase de conhecimento do par, o namoro e o noivado oficial até o
casamento haviam sido realizados de uma outra forma, ou seja, os "rituais
alternativos", onde entraram a "compra do acompanhante", o
"gargarejo", a "fugida à pracinha", a "última dança
marcada no carné de baile", haviam fortalecido a simpatia entre o casal,
contribuindo para a não sujeição ao "partido" escolhido pela família
da jovem. Mas, certamente, esses casos tornavam-se "perigosos" ao
modelo estabelecido, daí porque, as transgressoras recebiam tratamento
"especial", como por exemplo, através do rompimento do relacionamento
familiar, embora este nem sempre se estendesse por muito tempo até as
"pazes" com os pais. Havia, certamente, outras formas de pressão para
que as moças seguissem o indicativo comportamental de sua classe. Uma das
formas mais utilizadas era a censura às suas leituras, principalmente em se
tratando de romances. Mas, elas armavam os seus próprios artifícios e
conseguiam ler qualquer coisa:
"Eu
lia muito romance, mais escondido da mamãe. Porque ela não admitia, ela achava
que romance era ilusão na cabeça das moças."
O depoimento de Esmeralda Ramos, 75,
demonstra que ela tinha um aliado:
"Eu
queria ler romances. Então tinha os folhetins que o meu avô me dava e eu lia.
Mas a mamãe não gostava. (...) Aí eu lia ao luar, abria a janela e lia. Ela
ouvia o chiado da folha. Eu botava assim uma toalha e não fazia barulho,
procurava fazer silêncio, mas ela percebia."
O interdito familiar aos romances tinha
uma função: eximir a jovem dos assuntos "perigosos" do tipo
"sexualidade", assuntos dos "adultos" ou temas que
facilitassem o que era considerado "imoralidade". Mas, mesmo assim,
esses assuntos eram trocados, em forma de confidências, entre as jovens. De que
forma?
"Como
era proibido, a gente conversava mesmo nas reuniões, no colégio. Por
isso,quando ela veio falar para mim, eu já sabia ..."
A repressão à idéia das mulheres, em
torno do tema sexualidade, era uma exigência do modelo matrimonial
cristianizado que carecia da manutenção da virgindade feminina como fator
primordial para a celebração integral do ritual. Fortemente cercada de ritos e
interditos, decorrentes do poder profano e do poder religioso, a instituição
matrimonial situa-se, no cruzamento entre duas ordens, a natural e a
sobrenatural, visto que, "pela copulatio (cópula) entreabre-se a porta que
dá para o domínio do tenebroso, misterioso, terrificante da sexualidade e da
procriação, isto é, para o campo sagrado". Os artifícios e
mecanismos ideológicos construídos pela Igreja para garantir uma
"moral da boa vida conjugal" objetivava, entre outra coisa, excluir,
na união matrimonial, "a mácula inerente ao prazer carnal (...). Quando se
unem, portanto, os cônjuges não devem ter outra idéia na cabeça além da
procriação".
Os
recortes dos noticiários dos jornais, os depoimentos biográficos e as falas dos
entrevistados alinhados, nestas páginas, procuram reconstruir, ao lado dos
retratos femininos de uma época, a memória do casamento como prática
"naturalizada". Desses recortes, definiu-se um modelo de cerimonial
composto de ritos que funcionariam como fases seqüenciais da instituição
matrimonial do período. Vejo o namoro
como a fase inicial desse quadro ritualístico mas, para que este se desse,
havia, certamente, um momento anterior, que era a do conhecimento entre os pares. Há testemunhos de que este
realizava-se a partir dos encontros sociais, das visitas inter e
intra-familiares, das festas filantrópicas, dos bailes. Há registros de que,
algumas vezes, este conhecimento dava-se, nas salas de aula, quando a
organização disciplinar e pedagógica das escolas passou ao regime misto, visto
que, por muito tempo, o regime de separação intersexual - objetivando a
aplicação de diferentes formas de socialização para os dois gêneros -
manteve-se como prática pedagógica.
Há referências, entretanto, a uma forma imposta de namoro realizado entre
as grandes famílias da elite tradicional paraense. Flaviana e Adriano Guimarães
falam que as moças e rapazes da elite de regresso ao Pará, ao concluírem seus
estudos na Europa, recebiam de seus pais uma lista, onde estavam o nome de
outros jovens com quem seus filhos deveriam aproximar-se para casar. Os
"partidos", como diz Flaviana ao mencionar essas listagens, eram
escolhidos entre as famílias da elite tradicional paraense, e deveriam ser
aceitos pelos filhos, caso contrário, estes poderiam sofrer sanções, inclusive
de retornar à Europa, ou então, serem mandados para o Rio de Janeiro. Há
registro de casos de preconceito racial. Estes preceitos deveriam ser
obedecidos pelos filhos e filhas, principalmente por estas últimas, sabendo-se
de todas as interdições mantidas em sua socialização, indicativas da preparação
asséptica para o papel materno. Salientava-se, na memória destas práticas, a
"depuração" de classe que os pais realizavam sobre as filhas e
filhos, logo no início de um relacionamento mais sério como o namoro e o
noivado, expurgando as prováveis "falhas" do sistema patriarcal,
ainda em uso, e cujo objetivo, obviamente, era manter a riqueza no interior da
própria família. Não é a toa que Flaviana, em seu depoimento, faz referência às
regras que deveriam ser seguidas rigidamente pelas jovens da elite, aludindo às
baixas exigências para as demais classes.
Se a jovem não se interessava pelos
rapazes escolhidos por seus pais, ou se entre os membros de outras famílias de
sua classe não encontrasse uma pessoa de sua simpatia, certamente ela procurava
outras saídas, como exemplificam os casos já relatados, aqui, anteriormente,
sobre a filha do Dr. MacDowell, de Feliz Benoliel e da própria Flaviana. Quer
dizer, há rupturas ao modelo, mas há sanções, embora posteriormente, os
familiares se reconciliem com a "transgressora". As resistências a
essa primeira "seleção" familiar aos pares masculinos das filhas,
representavam uma prática muito comum entre as mulheres paraenses da classe
alta desse período.
"Os namoros daquele tempo eram
muito protocolares", diz Otávio Meira. A menção do escritor ao tratamento
protocolar entre o casal de namorados, quer referir àqueles que aceitaram um
"compromisso sério", fluindo a partir desta fase. Quer dizer, a jovem
simpatizou com um dado rapaz de sua classe e do agrado dos pais e tem permissão
para namorá-lo, dentro de casa, onde permanece acompanhada de um parente e até
mesmo da mãe. Neste caso - namoro
oficial - a tendência é a oficialização do noivado, uma segunda fase do ritual matrimonial, onde também há
interditos, e, finalmente, o casamento.
Quando os pais deixam livre a escolha
das filhas, esta fase de conhecimento levará a uma aproximação
"marginal" do casal e, conseqüentemente, a uma aparente
"ignorância" dos pais, em torno do relacionamento da filha. Os
encontros são fortuitos e as "juras de amor" são dadas através de
sinais de reafirmação do sentimento entre os dois. Esta fase romântica, entre
os namorados, é marcante entre os entrevistados que viveram os seus
"silêncios amorosos".
Outra forma de encontro
"marginal" era o "gargarejo", tipo de namoro já
referenciado. De acordo com o testemunho de Sultana Levy Rosemblatt, "os
namoros, naqueles tempos, eram muito inocentes. Só a moça lá em cima, à janela,
o rapaz em baixo, na rua". Outro informante, Edir Proença, 70, completa:
"Até que achava que devia assumir um compromisso maior, entrava na casa
...
Percebe-se também, no
"gargarejo", uma fase posterior à construção dessa forma preliminar
de conhecimento, onde é referenciado o "compromisso sério", que deve
ser uma fase de namoro consentido pelos pais da jovem, onde o rapaz freqüenta a
casa desta e mantém-se ainda dentro de outros interditos de regulação moral.
Quer dizer, o "compromisso sério" exige fortes motivos para um
rompimento, e se este ocorre, há a preocupação da família da jovem com os
falatórios. Deduz-se, daí, que o ritual de "entrada na casa" da
namorada reveste-se, preliminarmente, de maiores interdições, no ato da
"seleção", pois, se o namorado não convier à família, está fadado a
não ser aceito, dentro de casa, começando, então, uma fase de resistências da
mulher, se esta quiser continuar o relacionamento. Poderá até casar-se com o
pretendente, mas a formalização do cerimonial deverá selar apenas o protocolo
moral com a sociedade, no termo da saída da jovem da casa paterna, conforme
ocorreu com Feliz Benoliel:
"Assim
era ela, franca, brincalhona, filha obediente, tia boníssima, até o dia em que
um homem que se disse chamar Carlos Cavaco, um fanfarrão, apareceu, em Belém,
com chapéu de plumas e fardão engalanado, dizendo-se cônsul honorário de
Portugal, e fazendo conferências não sei sobre que assunto. Feio, embora, era
carismático e conseguiu que Feliz se apaixonasse por ele. Foi um triste drama
de família. Os pais sofriam, imploravam, choravam, o irmão Abraham usava toda a
sua autoridade, os outros irmãos e cunhados a aconselhavam, mas ninguém
conseguiu ter a força de persuasão daquele monstro que gritava num palco: 'Desafio, pelo amor de uma judia, o ódio
de mil judeus', e não só desafiava com palavras como mandou desafiar
Abraham para um duelo, que devia ser travado atrás da estátua da República.
Pura mentira! Abraham que não era covarde se apresentou, acompanhado de meu pai
e outra testemunha, mas o valentão não apareceu. Por fim, a família não teve
outra alternativa senão ceder. O maior obstáculo não era a religião, mas o fato
do bandido não ser solteiro. Então vigorava o casamento por contrato, e foi
assim que Feliz vestida de noiva, inocente, virgem, ele vestido no fardão com
que se engalanava para impressionar, selaram o contrato de 99 anos, mais uma de
suas palhaçadas. Meus avós, para provarem que a filha saiu de casa casada,
fotografaram os noivos, sentados no sofá."
O caso de Feliz Benoliel retrata todas
as interdições que poderiam estar ocorrendo entre os membros de sua classe
social e entre o seu grupo étnico. Ao transgredir as normas que implicavam o
modelo, havia, sem dúvida, de deixar um registro iconográfico de que saíra de
casa formalmente casada, cuja veracidade se impunha através das vestes nupciais
que usava, durante a cerimônia matrimonial. O retrato desse momento de
transgressão seria a prova final de negação de falatórios posteriores. Havia
necessidade de salvaguardar a família das conseqüências dessa ruptura como a assumida
por Feliz Benoliel.
O noivado,
era a fase subseqüente ao "namoro sério". Novos interditos, novos
ritos. Os Guimarães são unânimes em afirmar que num baile, uma jovem da
"alta" não poderia dançar seguidamente três ou quatro partes musicais
com um rapaz, pois já se configuraria "compromisso sério". Por outro
lado, à jovem noiva, interditava-se dançar com outro homem, salvo seu pai ou
irmão. Havia ainda a exigência de um período razoável para a realização do
cerimonial do casamento. Nesse período, as jovens eram levadas a aprender "artes
domésticas" (cozinhar, bordar, costurar) e também a ajudar na confecção
das peças de seu enxoval, que, muito embora viesse de Paris, essa " roupa
branca" exigia os acertos finais no corpo feminino a quem se destinassem,
daí porque, a maioria das famílias da "alta" mantinha em seu serviço,
uma costureira, dentro de casa, embora tivesse também uma outra que
confeccionasse os vestidos de passeio.
Pergunta-se, por que a uma jovem da
classe alta, exigia-se o conhecimento das "prendas domésticas" e, se
estas levavam da casa dos pais, pelo menos uma ou duas "criadas" para
o serviço doméstico? Através do testemunho de Mario Dias
Teixeira, esta exigência é que definia a nova "dona de
casa", haja vista que
as mães diziam: "quem não sabe fazer não sabe
mandar". A reprodução do conhecimento das tarefas domésticas, no meio
social mais abastado, tinha, portanto, entre as mulheres dessa classe, um
estatuto que as qualificava como as "mais prendadas", e as
"menos prendadas", de acordo com a representação do modelo ideal da
"mulher prendada". Saber fazer as tarefas, "da sala à
cozinha", era um refrão que acompanhava as candidatas ao casamento. E o
período do noivado era o momento do aprendizado e das "provas" à
entrada do novo estado civil.
A culminância das três fases seria então
o casamento. O marco desta fase era
a realização das bodas, o ritual que selava o cruzamento entre os modelos laico
e sagrado da aliança, onde as interdições ao comportamento feminino e
regulações tornavam-se mais rígidas e menos fáceis de rupturas. Os rompimentos
matrimoniais existiam, entretanto, nem sempre se concretizavam, conforme se
observa deste depoimento de Adriano Guimarães:
"Acho
que pelo respeito à família, não havia tanta separação, sabe. Alguns viviam
separados dentro de casa, mas agüentavam ali firmes, por causa da sociedade. E
se dizia: 'eles não se dão bem'. "
A virgindade
antes do casamento, a castidade, a pudicícia, a compostura nos trajes, a ânsia
materna, eram elementos indispensáveis ao retrato da mulher casada. Havia comportamentos cujas exigências se acentuavam,
como o da acompanhante regular, quando uma mulher
casada saía à rua. Um depoimento de Otávio Meira sobre a memória de sua mãe e
de uma prima casada, referencia esta condição:
"Uma
vez na vida saia para uma visita de cortesia a amigas, acompanhada de meu pai e
quase sempre levando-me e a meus irmãos em sua companhia."
Outro registro sobre o novo comportamento feminino, interdito à rua
depois do casamento, é dado pelos Guimarães, quando relembram o cotidiano de
sua mãe. O marido mandava deixar em sua casa as caixas de sapatos para que ela
escolhesse o que preferisse, a fim de que não fosse ao comércio, onde se
localizavam as sapatarias.
Há um
padrão de comportamento para a mulher casada.
Objetivava circunscrever o espaço feminino à área doméstica. As
interdições são de origem moral e religiosa, interferindo sobre
as modas e os modos das mulheres. A dominação desse padrão
moral comportamental sobre os
costumes e cotidiano das mulheres das demais classes "universalizam"
a reprodução dessas idéias e, ao mesmo tempo, tornam os comportamentos
femininos "naturalizados".
Casar, criar filhos, não trabalhar fora
de casa, obedecer às regras sociais para ser aceita, na sociedade, não ler os
livros condenados pelos pais, namorar os jovens de sua classe de origem,
obedecer ao marido, sair acompanhada, praticar a beneficência, são alguns dos
atributos colocados à imagem da mulher paraense da elite, criado pelo
imaginário masculino e feminino dos sujeitos que viveram as primeiras décadas
deste século. Entretanto, estes mesmos informantes e o noticiário jornalístico
falam das atitudes divergentes de outras jovens daquele período, que não se
casaram ou casaram-se fora da classe de origem, não tiveram filhos, formando,
assim, o inverso do quadro configurado. Isto quer dizer que o espaço social da
alta e média sociedade paraense não se restringiu a um único retrato de mulher.
Foi povoado de imagens de "ociosas" e "transgressoras",
mesmo que, para estas, a versão do registro oral do modelo apresente uma
memória de rejeição e aponte para um espaço, onde estas
"transgressoras" ficavam circunscritas: elas embarcavam para o Rio de
Janeiro sem bilhete de retorno.
As “cocotes”
É
significativo o depoimento do Dr. Adriano Guimarães (já falecido) meu
informante numa pesquisa em 1989. Sobre a freqüência das jovens ao cinema, diz
ele:
“O cinema era muito freqüentado . Era especial
o soiré das sextas feiras, porque era o dia das exibições dos vestidos das
grandes “cocotes” de Belém. Elas eram umas quatro ou cinco e disputavam entre
si a apresentação do vestido(...) Ainda me lembro do nome de algumas delas : a
Panchita, a Raio de Sol, eram espanholas; a Maria José Pequena, a Margot, esta
era francesa.Eram as mais famosas. Os “donos” delas ,andavam buscar os vestidos
em Paris. Elas eram conhecidas assim: “Panchita de fulano”, a “Margo de
sicrano”. Elas iam também de chapéu, como iam as senhoras, ostentando as suas
jóias, riquíssimas, que chamavam a atenção das famílias. Às vezes, a minha mãe
comentava muito isso. (...) Á saída do cinema é que era interessante. Elas
chegavam sempre no intervalo, no cine-jornal. Quando este terminava, havia um
intervalo de uns três a quatro minutos. Elas sabiam. Então elas entravam. Era o
desfile delas. Depois, quando terminava a sessão, as famílias iam para o
terrace do Grande Hotel para tomar sorvete. Enquanto terminava a repetição do
cine-jornal, elas saiam uma a uma, eram o comentário das famílias. Elas andavam
sozinhas, nunca se apresentavam com homem ao lado. (...) Geralmente esses
grandes “donos” dessas “donas” iam ao cinema. Eram industriais, comerciantes,
proprietários... não digo o nome ....têm descendentes, ainda.
Ao retrato feminino construído por
Adriano Guimarães, soma-se uma imagem de homem feito para constituir família,
apresentando um comportamento que mantém uma dupla moral sexual, a do chefe de
família e a do “dono das cocotes”. As mulheres também assumem uma dupla moral
sexual: as feitas para o casamento, mantendo um compromisso ingênuo pelo
desconhecimento da vida dupla masculina, e as “cocotes”. A distinção social
entre as duas é de classe, pois estas últimas freqüentavam os mesmos espaços
públicos das madames, usando vestidos de Paris, jóias caríssimas e chapéus.
Este detalhe representava a não-discriminação contra elas, segundo Adriano.
Sobre
modelos femininos da época da inauguração do Olímpia, pode-se perceber outro
exemplo através da pena do poeta Rocha Moreira, que em 1921 criou o Olympia
Jornal, veículo de propaganda da Empresa Teixeira, Martins & Cia, que
circulava as terças feiras, sendo distribuído gratuitamente na ante-sala do cinema. Em forma de tablóide,
o jornalizinho geralmente expunha em crônicas leves , a importância do cinema
enquanto lazer, o compromisso da empresa em trazer sempre novos e bons programas
da “arte norte americana”. Procurava versejar usando termos elogiosos ao
desempenho das atrizes principais dos filmes. Estes versos eram dedicados às
freqüentadoras do cinema.
Da beleza exótica de Pola Negri e da
personagem que interpreta no filme em exibição, Rocha Moreira tira a
adjetivação para contemplar a leitora, freqüentadora do Olímpia. Mesclam-se
termos como sofrimento e dor, amor e encantador, fala e apunhala, pranto e
encanto, extraindo-se de tanta rima a analogia entre a meiguice e o fingimento,
entre a santa e a “cocote”, resistindo no modelo de um único retrato da atriz e
da mulher.
&&&&&&&&&
Década de 1930
Os primórdios
da Segunda República,
no Pará, encontra
um quadro social promissor
a mudanças nas práticas
femininas. A luta sufragista comandada por
Bertha Lutz, no sul do país,
reflete na imprensa paraense, revelando posicionamentos não tão
distantes das opiniões
equivocadas com que os anti-sufragistas da década de 1920, contra-argumentavam
sobre a condução feminina "débil e frágil" para assumir a cidadania.
As
conquistas das mulheres paraenses, no espaço público, ganham
um tom de "novidades", pois, quando noticiadas, são sempre rotuladas
como "vitórias do feminismo", ou
"feminismo em marcha".
Os gestos e
atos para definir
seus espaços são sinais
inconfundíveis. As mulheres que viveram esse período, comentam uma certa
pressão para tirá-las
do campo profissional;
na esfera doméstica,
são percebidas rupturas como preconceitos
familiares
O
magistério foi o maior campo de expansão das atividades profissionais
femininas. Na imprensa, cresce os anúncios de médicas, parteiras,
ginecologistas, pediatras, dentistas, embora não haja registro de advogadas
militantes. Exigem-se "moças fortes" para trabalhar como
"caixa", no comércio. As indústrias de beneficiamento de castanha -
produto comercial que libera as pautas da exportação - anunciam a tendência das
fábricas em admitir operárias.
Se, nas décadas anteriores, os jornais permitiam apreciar as
manifestações das mulheres letradas, primeiro como consumidora de literatura e,
em seguida, como uma ativa produtora intelectual que forja o retrato da mulher
culta, intelectual, sensitiva, expondo seu ser feminino e identidade, a década
de 1930 decresce essa produção, nos jornais, mas criam-se espaços nas revistas literárias. Há uma diversificação de campos e presenças. Além dos
jornais, também as revistas absorvem essa produção e o não menos novo e
criativo meio de comunicação, o rádio,
aos poucos toma lugar preferencial, com suas qualidades comunicativas e
coletivizantes. Os clubes sociais diversificam suas programações com sessões
para audição dessa novidade técnica e as jovens declamadoras e
"virtuoses" dos variados instrumentos musicais ganham mais um espaço
para demonstrar seus dotes artísticos.
Recriam-se os espaços sociais do lazer
feminino, sejam sessões de cinema, sejam programações de festas dos clubes e
das casas de família. É "chic" a freqüência às matinês do Olímpia,
onde a roupa domingueira é sempre uma exigência, mesmo nos dias de semana. Os
outros cinemas freqüentados eram
o "Rio Branco", Independência, Iris.
Aparentemente,
libera-se a jovem do acompanhamento obrigatório às saídas diurnas para o espaço
público, desde que ela consinta em agrupar-se com outras jovens. Mas, a rigor,
jamais sairá sozinha à noite ou para uma "soiré " dançante, nos
clubes.
A moda exige, agora, largas saias godês
ou vestidos tipo "melindrosas", comprimento abaixo do joelho; as
mangas são cavadas ou curtinhas; os tecidos de organdi suíço, tafetás, lamês,
linhos, voiles e sedas. O clássico "tailleur" mantém-se para os
momentos sóbrios (missa, saídas mais formais).
Os sapatos de verniz, couro, ou camurça, cetim ou veludo, mantém o salto
à "Luiz XV" e também o chamado saldo "carretel". Os
chapéus, ainda uma exigência dessa época, geralmente eram comprados na Casa
Guerra ou confeccionados pelas chapeleiras. As formas variavam, geralmente
tendiam à moda parisiense.
Além da Assembléia Paraense, os clubes
sociais freqüentados pela elite e pelas classes médias do período, são o Clube
do Remo, o Pará Clube e o Palace Theatre. Havia ainda os clubes dos bairros da
periferia como o Alenquer Clube, da Cidade Velha, por exemplo, freqüentado
pelos moradores. Nesse período, eram freqüentes os "assustados", que eram festas dançantes realizadas nas casas
de famílias, geralmente organizadas por um grupo de pessoas ligadas ao dono da
casa que, entretanto, só ficava sabendo do "assustado" na hora em que
os convidados chegavam à sua casa, levando os demais participantes e a
orquestra. As músicas, variavam do samba-canção às valsas, passando pelo
clássico samba e pelo "fox-trot", marchas, tangos, maxixes e sholtt.
Os romances mais procurados pelas jovens
tinham autoria variada, indo desde Machado Assis, Eça de Queiroz, José de
Alencar, Victor Hugo,
Alexandre Dumas Filho, até M. Delly, Emile Bronté, Xavier de
Montepin, sem falar nos "folhetins" publicados pela imprensa diária.
Além desses espaços sociais, os
encontros com os namorados podiam ser realizados no jantar dançante do Grande
Hotel, nos passeios no Bosque "Rodrigues Alves", no "Largo da
Pólvora" ou nos balneários, Pinheiros, Mosqueiro ou mesmo o Outeiro, onde
havia o "Patronato Magalhães Barata". Os namoros ainda sofriam
restrições por parte dos pais, daí porque, ainda podem ser encontrados os
célebres "gargarejos". Mão dadas, passeio de bonde, conversas na
janela e na sala de casa, os namoros, entretanto, permanecem sob estreita
vigilância e, necessariamente, a contravenção e burla das regras rígidas das
relações entre os sexos.
Festas beneficentes, grandes quermesses
no Bosque, freqüência às sessões promovidas pelas associações filantrópicas e
religiosas, contribuem também como os lugares das trocas matrimoniais, do
exercício de um papel - a mulher casadoira, contracenando com o homem
conquistador e conquistado... Era ultradesejável o casamento para a mulher,
algumas fugiam ao destino manifesto...
Este quadro de costumes em duas épocas
belenenses mostra as mudanças sociais que transformaram as relações entre
homens e mulheres. E como o eixo de referência é o Olímpia, como o lugar da “encantaria”, aquele não-lugar da cidade
que guarda os imaginários de todas as épocas em 92 anos de permanência (através
dos filmes e da agregação da afetividade), as imagens da memória sobre as
“musas” também evocam o tempo da cidade entre modernidades. Hoje não há mais “mulheres
da alta”, nem “cocotes”, “nem sereno” porque os costumes perderam o preconceito
sobre a classe social, sobre a sexualidade e o “ficar” resolveu os problemas do
casamento. Ou seja, não são mais as modas dos vestidos que garantem o casamento
mas a inteligência de escolha do parceiro ou da parceira. Não há mais a
presença desautorizada para enfrentar o preconceito num cinema tradicional. O
Olímpia convive com a tradição mas se tornou moderno pela democracia
estabelecida pelo próprio sistema que o criou. Ele precisa de público e todos
são bem-vindos em sua sala.
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