Jennifer Lawrence em "Mãe!"
O
teórico do cinema Jacques Aumont tem uma bagagem considerável de obras que
abordam temas e categorias sobre a linguagem, sobre narrativa e imagem, além de
análise de filme. Tenho me apropriado da leitura dessa literatura, menos do que
eu deveria, mais em atender as necessidades urgentes. Dele, de alguma forma, me
aproprio reconhecendo sua pertinência em considerar tipos de análise de filme.
Um ponto necessário é o que ele trata em torno da narrativa cinematográfica em
“A Estética do Filme” (2002). Para ele, o início do cinema é um meio de
registro de imagens e ao seguir a dinâmica do processo, esta arte encontra a
narração. No primeiro caso, a imagem é figurativa representando o objeto
fotografado, que se torna reconhecido e, nessa representação, explora o que
quer dizer sobre esse objeto e, implicitamente, conduz um enunciado sobre esse
objeto. Diz Aumont (2002: 90) “o objeto já é um discurso em si”. Quer dizer,
esse objeto recria o sistema no qual gravita remetendo a representação do mesmo
a um determinado discurso, ou a narração deste relacionando-a ao retrato
fotográfico, os quais considera como narrativas. O autor trata também da imagem
figurativa cinematográfica, em permanente movimento, consequentemente, em
transformação constante.
A
transposição de um recorte de Aumont sobre o conteúdo da imagem no filme e o
nível de representação que os elementos do cinema exploram para a constituição
dessa imagem pretende embasar meu entendimento sobre o filme “Mãe!” (2017), de
Darren Aronofsky, utilizando ainda outros recursos da análise da argumentação e
dos tipos constituídos relacionados entre si. Para isso, valho-me de outros
argumentos de conteúdo analítico sobre a figura feminina da mãe (Jennifer
Lawrence) e a masculina, Ele (Xavier Barden) considerando a imbricação entre as
duas versões.
Em
“Está a Mulher para o Homem assim como a Natureza para a Cultura?”(1979), a
antropóloga norte-americana Sherry Ortner constrói uma interessante
argumentação sobre natureza e cultura, explicando que são categorias
conceituais e em algumas culturas “estas se estipulam uma oposição muito mais
forte entre as duas categorias, que em outras (...)”. A autora levanta a tese
de que a identificação feminina, em cada cultura, dá-se através de um símbolo
inferiorizado, destacando três níveis do problema: a) universalidade da
subordinação feminina; b) a variação cultural do específico feminino, visto
através das ideologias, simbolizações, classificações socioculturais; c)
posição entre a ideologia cultural e as formas de ação, decisões, influências,
etc., das mulheres.
O
problema da universalidade da representação sobre a subordinação feminina, ou
seja, da desvalorização universal da mulher - fundamento de sua tese - é visto
através dos seguintes dados: a) o elemento ideológico da cultura que leva à
desvalorização explícita das atividades e dos papéis femininos, do que a mulher
produz e dos meios sociais que utiliza, em relação ao prestígio assumido por
qualquer dessas funções realizadas pelo homem; b) certos quadros simbólicos que
facilitam interpretações implícitas realizadas através de avaliações
inferiorizadas, como é o caso da "prerrogativa de violação”; c) e um
último dado, refere à exclusão explícita da participação da mulher na esfera
pública, com base em subclassificações sociais e culturais. Estes dados podem
ser vistos inter-relacionados, embora qualquer deles evidencie um grau de
inferiorização da mulher, em cada cultura, nem sempre considerados socialmente
como discriminatório.
Observa-se,
através da análise de Ortner, a tendência a demonstrar que a questão da
desvalorização universal da mulher se define através da identificação simbólica
desta com a "natureza" e do homem com a "cultura", surgindo
daí as demais classificações que passam a determinar os estigmas e a negação de
uma presença relacional hierarquizada entre o homem e a mulher.
Por
outro lado, centrando na exposição de Bursh, o objeto tratado cria um discurso
em representação, relacionando as imagens ao retrato fotográfico,
considerando-os como narrativas.
“Mãe!”
(Mother!, EUA, 2017, 2h02min), o filme de Darren Aronofsky, expõe uma
argumentação clássica sobre uma mulher assumindo a categoria de mãe, usando
elementos que evidenciam os caminhos da narrativa utilizada pela história
original criada pelo diretor que é também o roteirista, traduzindo-se em planos
que formam as sequências de tempo e espaço.
O
enfoque do principal personagem masculino, chamado simplesmente de Ele(Xavier
Barden), utiliza planos próximos e câmera sempre manual para edificar a imagem
do poeta/criador em busca de inspiração – em bloqueio criativo - para sua nova obra, contracenando com a mulher
e a casa de moradia (ambas de confundem e estão a serviço d”Ele), ela vista
quase sempre em close, e as dependências da casa em tomadas próximas,
usualmente travellings, querendo dizer da importância da mulher/mãe sempre
ligada à Ele, e a constante mudança que se faz nos aposentos. A Mãe (Jennifer
Lawrence ) restaura o lar marcado pela deterioração de um incêndio, mas é como
se essa atividade fizesse parte do “serviço doméstico”, haja vista que é
dividido com o tempo de execução dessas tarefas.
Em
algumas sequencias do filme, há tomadas que não chegam a delinear objetos e sim
os estragos que se sucedem com as invasões de pessoas estranhas ao casal
(especialmente a Mãe, sem que ela se faça ouvir pois, nos raros diálogos que
trava com o marido, o que mais importa a Ele é a qualidade de senhorio, ou o
que possa alimentar a sua vaidade de escritor bem-sucedido).
O
artesanato de Aronofsky é sempre nervoso, procurando dimensionar a sua ideia de
que a inspiração artística do homem deve sacrificar tudo e todos. Para isso o
foco é sempre alegórico, não cabendo liames realistas a ponto de se ver o modo
como “suga” o coração (a base da inspiração) da esposa depois de sacrificar o
filho em holocausto como se ofertasse ao deus da fama o que se cria na carne.
Mas é nessa base simbólica que se reflete toda a ideologia do modelo da cultura
tradicional sobre as relações entre homens e mulheres que ainda hoje tem peso e
que subsidia o reforço ao preconceito e à discriminação àquelas mulheres que
deixam de seguir o padrão estabelecido. Essa a minha perspectiva crítica nessa
encenação que não oferece uma opção para, no final, pensar que, enquanto
roteirista e diretor, portanto, criador das imagens circulantes no filme, numa
perspectiva mesmo alegórica, desse um lugar para mostrar uma nova possibilidade
da narrativa, de fuga a esses padrões, apesar da retenção social na cultura
hierarquizada das relações de gênero.
Há
planos que levam à continuidade da ação e a continuidade da argumentação que
tende a ser a continuidade da tese que foi proposta pelo diretor e roteirista:
Ele (Barden) será sempre o criador a quem todos se submetem diante de sua
criação (cf. Ortner). Quando ele deixa de criar é esquecido, mas quando surgem
animadores para valorizar suas obras ele cresce, é capaz de destruir o ambiente
e ser Ele, o mesmo que está diante do fascínio da criatura que renasce em sua
obra.
A
figura da Mãe embora seja vista como a restauradora da casa incendiada, aquela
que guarda as obras do criador - as vidas humanas, mas são, também, parte da
obra que é gestada por ele - está sempre em segundo plano se admirando do que
ocorre na relação dela e d’Ele. O acervo externo que Ele coloca para dentro de
casa sem que ela tenha acesso a uma decisão para que isso ocorra – os humanos –
o pai, a mãe e os filhos que chegam e se tornam hóspedes e/ ou tomam conta da
casa – tem mais peso nas decisões d’Ele do que no dela que se vê isolada,
oprimida. Decisões geradas pela inconsciência dela sobre a atitude tomada por
Ele, que se manifesta prazerosamente sobre a presença intima e cada vez mais
delirante de seus admiradores.
Assim,
seguem os planos organizados no filme – entrando espaço e tempo nas sequencias
construídas – com grande aspecto da simbologia como que são apresentados. E o
final remete à perspectiva do início do filme - o criador já se fez por outros
enredos aos quais submeteu o que será visto em seguida, é um fato recorrente –
esmaga um coração extraído das entranhas da Mãe, transformando-o em mais um
cristal que só atinge o pedestal depois dessa operação entre a extração do que
há de mais puro na representação do amor.
Se
se pensa em restauro de uma perspectiva crítica sobre a situação das mulheres
em luta por direitos iguais e sendo exposto todo o desrespeito à figura
feminina representada pela Mãe, não vi nenhum nível de exposição desses
símbolos restauradores, mas da recorrência ao que que Sherry Ortner constata em
sua versão sobre o modelo definidor de “natureza” e “cultura” revelando as
representações tradicionais de gênero. Usando um conceito que me fascinou há um
mês, apresentado por uma graduanda da área de Letras/UFPA, percebe-se que,
entre símbolos e metáforas do filme, há um “apagamento” da voz da mulher
tratada como Musa.
Há
muito mais para que seja tratado no filme, como a versão de alguns textos
críticos que evidenciam o discursos bíblicos aproveitado pelo
diretor/roteirista na sua narrativa cinematográfica. Alguns até estabelecem as
passagens desses discursos apontando o que há de integrativo no texto fílmico.
Noutra ocasião trato disso. Lembro apenas que para fugir ao modelo da mãe
submissa, a Mãe/Musa sem voz, ao apagamento da personagem Mãe, precisava um
outro modo de tratar a argumentação proposta. Há as mulheres anônimas da Bíblia
que com certeza avançaram naquele ambiente patriarcal e deram o seu recado.
Cotação
ao filme: REGULAR.
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