Kate Winslet em "Roda Gigante".
O cinema de Woody Allen
é marcado por uma teia cultural e de vivências pessoais favorecendo uma forma
própria de autoria temática e estética de seus filmes. Da comédia às críticas
traduzidas em sua formação nas várias épocas em que se alimentou de ideias familiares,
religiosas institucionais e em sua própria tradução dessas culturas vividas,
deslocaram-se para o seu “que fazer” no cinema. De certa forma, impossível
dissocia-lo de uma série de eventualidades que ele apresenta no contexto de sua
obra, embora ele negue essa visceralidade presente, a meu ver, em uma parte
considerável de sua filmografia.
Seu mais recente filme
exibido no Brasil (o atual, “A Rainy Day In New York”, está sem data de
lançamento) – “Roda Gigante” (Wonder Wheel, EUA, 2017) – tem sido visto, por
alguns, como repetitivo, por outros como (o seu primeiro) filme dramático e,
assim, como muitas obras de autores que permanecem produtivos no cenário da
realização, o filme tem recebido críticas favoráveis e desfavoráveis por ser
tratado com os mesmos “sintomas” de outras obras do diretor. A crítica mais
radical não se desloca tanto para a estrutura narrativa embora haja faíscas
para tal, mas tende a abominar o diretor e sua obra pela denúncia que
reaproximou a sua figura pública do pai que assediou sexualmente a filha menor
confirmando as acusações anteriores.
Sobre o modus operandi
de representação das personagens femininas, avalio os espectros da realização,
atentando para aspectos do roteiro, da fotografia e da atuação dos atores
(vivendo as suas personagens) nesse cenário.
A abertura do filme é
feita numa sequência sobre Coney Island (Brooklyn, NY). De longe o visor da
câmera detalha, à medida que circula, a ilha, a praia, as atrações variadas,
vendedores ambulantes, o parque de diversões, as lojas e restaurantes. Recai
nas pessoas que buscam locais para circular, enfim, foca na multidão de
transeuntes com o narrador da história definindo o tempo e o espaço, no seu
palco improvisado como salva-vidas da praia, Mickey (Justin Timberlake).
Aliás, esse personagem
é também um pouco narrador da história e ao anunciar sua identidade aponta seu
desejo de escrever... melodramas para o palco.
Deste reflexo, o filme
entoa a máxima do que pretende apontar no percurso que vai dar no roteiro. É
tempo de verão em Coney Island, nos anos 50, e o foco se dá no relacionamento
entre um operador de carrossel e sua mulher que trabalha numa lanchonete,
viventes numa casa com espaço reduzido, à sombra do parque; a mulher deste com
sonhos de fugir daquele marasmo a dois vivendo, ainda, uma relação tumultuada
com o filho excêntrico/piromaníaco. Agrega-se, desde a primeira sequência do
filme, jovem que foge da máfia e cuja esperança de não sofrer violência espera
encontrar na casa do pai, nas suas próprias condições de protetor paterno e
chefe de família. Há o salva-vidas que circula nessa trama, justificando-se
para o espectador por assumir um subemprego, com pretensão de ser um escritor
melodramático. Essa trama geral, aparentemente simples, é construída com o reforço
de elementos valorizados no cinema de Woody Allen, como a fotografia, a cor, os
movimentos de câmera (que dão a entonação que um filme requer) e o desempenho
dos atores.
As figuras femininas de
Woody Allen têm alguns requisitos que expressam a sua cultura em termos do que
é feminino e do que é masculino, mas não necessariamente em tratar essas duas
categorias na perspectiva das teorias críticas da hierarquia de gênero.
Trata-se de um enfoque com base numa relação marcada pela formação na cultura
tradicional com seu modo próprio e patriarcal de ver as mulheres.
Em “Roda Gigante”, o
empenho do diretor é apontar o sentido de uma tensão familiar em que duas
mulheres de idades diferentes, disputam o amor de um homem. A Ginny de Kate
Winslet (que vive com o segundo marido) e a sua enteada Carolina (Juno Temple)
que havia se afastado do pai, mas precisa deste para proteger-se dos mafiosos a
sua procura. Elas têm aspirações diferentes, mas esperam tocar as emoções do
salva-vidas Mickey à sua maneira. A primeira, para sentir-se viva (casamento
aos pedaços, subemprego) transferindo ao namorado o que lhe resta de afeto e,
também, pela afinidade dele com a arte teatral, ela que aspirava seguir a
carreira de atriz. A enteada, desejada pela idade e beleza, confere àquele
triângulo um contraponto bélico na relação já iniciada entre a madrasta e o
sedutor, a ponto de aquela criar armas para o enfrentamento (cf. o momento em
que Ginny deve proteger a jovem de seus perseguidores mafiosos). Essa disputa
amorosa, se leva a pensar em fantasias femininas, opera, na verdade, com a
emblemática disposição de mudança de vida tanto de uma quanto da outra. E
quebra-se no lado que se pensa mais forte. Em Ginny circulam os efeitos de como
se deu a mudança de sua própria sorte. Nesse caso, veja-se em outros filmes de
Allen, como a personagem Cecilia, de Mia Farrow, em “A Rosa Púrpura do Cairo”,
quebrando as amarras da violência doméstica, e ao materializar o personagem do
filme que assiste diariamente, foge do cotidiano constrangedor com o marido e
segue com essa figura mítica até aonde der. E Cate Blanchett (Jasmine), em
“Blue Jasmine”, que nas várias mudanças de classe e de posição social impostas
pelas falcatruas do marido e das quais também participou sem ter consciência
disso, deixa o campo das retomadas pela antiga posição e cria sua própria
linguagem num banco de praça, solitária (neste caso, um médio plano,
disponibilizando câmara e objeto, para captar a pequenez dela no ambiente),
falando para alguém (aproximação da câmera) supostamente ao seu lado.
A tensão conflituosa,
nos dramas vividos pelas personagens femininas, desses três filmes revela-se em
roteiros cujos contornos estabelecem os meios para definir o que tende a ser as
evidências significativas desses dramas. Os planos (uma forte acentuação nos
enquadramentos), a fotografia, a cor, a música, favorecem o espetáculo
cinematográfico traduzido na vivência do dia a dia de cada figura transformada
em personagem objetivada.
Em “Roda Gigante” as
evidências do drama de Ginny são fixadas em um tempo, cujos recortes de outros
tempos passados traduzem a síntese do que se observa nas aspirações manifestas
pela personagem. Tensão no casamento – o segundo marido – um homem rude que não
a acompanha em seus ideais de viver o esplendor da atuação como atriz; tensão
com o filho - não somente pela síndrome de incendiário dele, mas por se
constituir num élan com as culpas que assimilou do primeiro casamento (cf. as
conversas que a mãe tem com o filho sobre o pai dele; e na confissão ao
namorado sobre esse episódio). Tensão com a enteada – a juventude, a beleza, o
afeto do pai – na competição pelo amor de Mickey.
O trânsito, nesse
enredo, se dá não só pelos diálogos que acompanham o processo, mas,
principalmente, pela forma de a câmera ir atrás desses personagens, em closes
onde a tensão deve se expressar nas máscaras próximas; em médio plano quando o
ambiente necessita ser exposto e circulante porque operam integrados; em grande
plano quando há necessidade de apontar para o isolamento, os lugares de
encontro, os espaços em que os vazios da praia querem mostrar o vazio
existencial em que Ginny se acha. As escolhas musicais repercutem nos apelos ao
tempo próprio e àquele tempo da ação dramática. Composta na base do jazz dos
anos 50, tende a caracterizar as tensões e emoções da hora.
Com a fotografia de
Vittorio Storaro a exposição do que está em jogo na tensão familiar – nos
bastidores muito mais do que na arena da relação entre os quatro integrantes –
a luz e os enquadramentos necessários a personalizar tanto a dona de casa
quanto a amante, traduz o ambiente teatral das cenas construídas por Ginny,
marcando imagens nas quais ela expõe tanto a euforia de ter conseguido alguém
que a ame (há uma luz intensa e o enquadramento da câmera sobre seu rosto), explora
as atitudes de desinteresse pela agenda do marido - não só o diálogo sempre
tenso entre eles, mas as reações (luz intensa) quando este tende a proteger a
filha. As sombras da roda gigante sobre a moradia têm impacto no momento em que
Ginny reconhece que está perdendo terreno para a enteada e procura vestir-se à
caráter com sua antiga indumentária teatral.
O resultado é uma farsa
que aquele grupo está experimentando no sentido de jogar suas cartas de desejos
e decepções em situações irreversíveis.
O fecho sugere que a
consequência dos atos (de todos) é refletir uma rotina dramática que o corifeu
da história assume. Mas as duas últimas imagens, muito sugestivas, mostram o
garoto piromaníaco, filho de Ginny, fazendo uma fogueira na praia deserta (baixa
luminosidade e ênfase na fogueira). E um close dela, espelhando seu sofrimento
de prosseguir como a mulher por conveniência em um cenário que odeia. O giro da
roda gigante que repete amores e dores num cotidiano que, por suposto, pode
mudar. Já mudou.
Como a maioria dos
filmes de Allen, este tem uma história pessoal por trás. Com base numa teoria
crítica feminista as evidencias são notórias sobre o tratamento do cinema às
figuras femininas (cf. Ann Kaplan, Laura Mulvey, entre outras). No caso de
Alllen, sua obra, hoje, ficou marcada pelas denúncias de assédio à filha. Creio
que é possível tratar da construção de suas figuras femininas pelo formato da
cultura patriarcal que o acomete. A intolerância com a violência doméstica
opera no rigor ao formato da construção da narrativa que aplica sobre as
figuras femininas em sua obra. E é possível fazer isso. Não foi o meu caso
neste momento. Gostei do filme.
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