Uma atividade prioritária não me permitiu
tempo disponível para apresentar, neste espaço, os meus prognósticos e expectativas
em torno dos filmes indicados à premiação da Academia de Artes e Ciências de Hollywood, o
clássico Oscar, avaliação feita por profissionais da indústria do cinema:
diretores, maquiadores, atores, técnicos de som, executivos, técnicos e demais
convidados pela academia. Meses
antes da cerimônia, esses agentes iniciam a avaliação dos filmes definindo, inicialmente,
as indicações.
Se antes da pandemia os filmes
indicados ganhavam as distribuidoras
brasileiras em um número de cópias capaz de atingir frações de mercado exibidor,
por outro lado, aumentou, nesses dois últimos anos, o número de edições
digitais, ou seja, de filmes que são distribuídos sem usar película, ganhando
espaço online e, com isso, ostentando mais economia e fluidez. Trata-se da
tecnologia de transmissão de dados pela internet constituindo-se no chamado streaming,
ou seja, as plataformas que oferecem programação para assinantes como a Netflix,
Spotify, HBO, STAR+, Disney, Amazon Prime e mais e mais.
No isolamento social a que Pedro Veriano
e eu nos vimos diante das sessões presenciais em cinemas da cidade (somente nos
shoppings, atualmente), tivemos uma pessoa querida que nos proporcionava
assistir, desde janeiro deste ano, os prováveis filmes indicados. Marco Antônio
Moreira (a quem agradecemos de coração) era o nosso “fornecedor” de copias em dvd
desses programas, alguns ainda sem exibição nas plataformas. E assim conhecemos
todos os filmes indicados. Tínhamos nossos preferidos, mas, à medida que assistíamos,
esse entrava, também, no páreo das dúvidas. As discussões a dois, faziam a vez
da necessidade de uma revisão e... graças... o tal filme divisor de águas já
estava nas plataformas. Revíamos.
Tivemos nossos melhores escolhidos, mas,
este ano não fizemos as apostas familiares tradicionais.
E A Academia Fez A Festa
Neste domingo, 27/03, ainda isolados, testamos
nossas escolhas, nos prováveis vencedores. Algumas se confirmaram e outras não.
O que vimos nesse evento? Pessoalmente,
continuo a reconhecer que o Oscar se torna o aliciador comercial do público
mundial de cinema, “fazendo mentes e corações” numa sociedade capitalista. Não
me arredo dessa crítica que sempre fiz. Entretanto, sistematicamente, com as
mudanças da crítica social à ausência de diversidade no cinema roliudiano,
algumas mudanças se tornaram insurgentes. A questão do preconceito estrutural à
racialidade, às mulheres, às/aos idosos, à transexualidade, ao assédio sexual
às atrizes foram temas focados de forma crítica nos momentos dessa celebração
nos últimos anos, e, também, na denúncia ao número reduzido de diretoras &
outras categorias de mulheres nessa profissão, além de outras análises críticas
sobre a narrativa cinematográfica.
Exemplo dessas evidências em que a academia
passou a ser questionada é que em 2015, por exemplo, entre os 20 atores
indicados não havia nenhum negro. Outro aspecto: a distribuição das funções de
escolha era majoritariamente formada por homens brancos. Embora tenha mudado, de
8% não brancos, ainda permanece o percentual de 16% formado de negros, latinos,
asiáticos.
Da lista de indicados neste 2022 - "Belfast",
"Não olhe para cima", "Duna", "Licorice pizza", "Ataque
dos cães", "No ritmo do coração", "Drive my car", "King
Richard: criando campeãs", "O beco do pesadelo", "Amor,
sublime amor" – os meus preferidos eram “Drive my car"(perfeição de
roteiro, de tema sobre a intersubjetividade, e compromisso com a visão reflexiva
da perda e da dor), e "Ataque dos cães" (também excelente roteiro e o
revisionismo da masculinidade performática em figuras de um cinema clássico que
internalizou no público o conceito de macho caubói). Os demais, considerei bons,
a exemplo, “Belfast” e o olhar da criança em relação aos conflitos bélicos; “Amor
Sublime Amor”, nessa nova versão de Steven Spielberg, marcando as evidências
dos conflitos raciais, que na outra versão, crescia o lado romântico do filme.
Nos minutos finais do evento, ao ouvir a
chamada à “CODA (Children of Deaf Adults) - No ritmo do coração” fiquei em
choque. Apesar de ter gostado do filme, considerei uma refilmagem do francês “A
Família Bélier” (2014). Com a linguagem de sinais do discurso de Troy Kotsur –
premiado como melhor ator coadjuvante, pelo filme – o soco no estômago foi
incondicional. A versão francesa apresentara os personagens sem a dimensão dos
que foram escolhidos pela diretora e roteirista Sian Heder, norte americana de
44 anos, preferindo atores que representassem sua própria identidade com a ausência
de uma capacidade tão importante para viver esses personagens. Diz a diretora: “Queria
encontrar uma forma de retratar a autenticidade dessa vivência, que nunca vemos
nas telas”.
E nesse aspecto, vislumbrei um novo
percurso dado pelos técnicos avaliadores da academia. Um filme independente que
traz essa versão de linguagem de sinais pela própria inexistência de outros filmes
já realizados, procurou envolver a discussão em mais um aspecto da diversidade
social, nesse caso, o capacitismo. Troy Kotsur claramente apontou a ausência
de convites para personagens com essa característica. Um tema que pode abranger
milhões de outros realizadores sensibilizando-os para o fato de que os assuntos
escolhidos e a indicação dos personagens precisa estar comprometida com a
crítica aos vazios da indústria cinematográfica que não oferecem oportunidade a
esses atores com a voz através de sinais, um ponto de vista crítico que precisa
ser reconhecido para além das câmeras.
Ao rever esse aspecto do “criar/fazer/realizar”
cinema na inclusão de mais um detalhe da situação da diversidade social – o capacitismo
- não excluo meus filmes preferido “Drive my car” e “Ataque dos Cães” aos quais
premiaria em todas as categorias.
O meio de expor as evidências da
narrativa de “Drive my car”, torna-se num crescendo dos silêncios e do
relacionamento entre o personagem principal Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima)
e os monólogos ouvidos em suas viagens até Hiroshima, em uma gravação de sua
mulher que interpreta as falas da peça “Tio Vânia” de Anton Tchekhov. Sequenciando
a narrativa em outra função, após a morte da esposa, ao tornar-se o responsável
pela direção e escolha de atores para a montagem da peça, aos pouco se
reconhece, se revê (pelo diálogo com um dos atores escolhidos) e amplia a
dimensão psicológica complexa no enfrentamento de sua aprendizagem com a pessoa
que dirige seu carro, também dolorida pela culpa pessoal, como ele, em relação
à sua mulher.
O filme do diretor Ryûsuke Hamaguchi, adaptado
de um conto de Haruki Murakami, tem um
ritmo lento pela necessidade de aprofundamento para o reconhecimento do
processo de vida do personagem e se torna um road-movie pelas constantes
viagens que este faz na estrada que percorre até seu lugar de trabalho. Uma
metáfora ao que ocorre internamente ao percorrer seu interior e rever seus
sentimentos com a motorista que com ele transpõe esses caminhos, compartilhando
seus sentimentos, sua dor e culpa.
Quanto a Jane Campion realizou “Ataque
dos Cães” e por este filme foi premiada neste 2022, como melhor diretora, o segundo
Oscar que recebe, sendo o primeiro para “O Piano” (1993).
Em “Ataque dos Cães”, o foco principal
trata, da diversidade humana e das representações que o cinema realiza em torno
de figuras tradicionais masculinas num ambiente onde as mulheres transitam nos
serviços domésticos mesmo em ambientes públicos (restaurantes, a ex.). Trata
sobre a masculinidade. Adaptado do livro “The Power of the Dog”, de Thomas
Savage, lançado em 1967, escritor de excelência no gênero literário. Somente
agora transformou-se em projeto de cinema pelas mãos de Jane Campion. Que
revolucionou o tipo do cowboy, desmistificando-o.
Os/as espectadores/as criaram no
imaginário a figura do “cowboy” construída em filmes de diretores como John
Ford, Sam Peckinpah, Sergio Leone, Clint Eastwood (para citar os mais
conhecidos), nos chamados westerns ou, popularmente, nos "filmes de
faroeste", cujo gênero clássico pode ser classificado nas estratégias de
produção e comercialização do cinema norte-americano. Jane Campion foge ao
padrão, ao mostrar outros tipos: um que se incorpora na tradição do “machão”,
outro cuja figura se empenha no formato gestual e elegante, inclusive na forma
cortês de tratar a todos, e outro, um jovem que não se enquadra em nenhum
desses tipos, dócil e sensível.
Há referência deste filme no Blog da
Luzia (http://www.blogdaluzia.com/2022/01/as-mulheres-atras-das-cameras-e-seus.html)
, dai não tratar dele neste texto. Creio que mais um mérito para a diretora era
a premiação de seu filme, do roteiro, do ator principal e do coadjuvante. Com
tanta destreza se interpõem na realização que fica inconsequente a premiação de
direção. Mas ao menos valeu a estatueta. Mais uma temática atual que Jane
Campion manteve nas discussões públicas sobre esse filme.
No Oscar 2022 não poderia deixar de referir
dois aspectos que achei interessantes: a homenagem aos 50 anos do filme “O
Poderoso Chefão”, estando presentes Francis Ford Coppola, Robert De Niro e Al
Pacino. Foi um grande momento essa celebração.
A outra, o momento de apresentar as
pessoas do cinema que partiram esse ano. Uma cerimônia singular a quem assistiu
aquele momento de tanta emoção. Um tempo, um momento uma vida. Hoje, para a
minha geração as faces dos novos habitantes na Cinelândia que conhecíamos, está
sem rosto. Desculpem a nostalgia sobre esse lugar e esse tempo para o cinema mundial.
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